Isto também é meu!

Crónicas 14 novembro 2023  •  Tempo de Leitura: 2

Temos muita dificuldade em aceitar o que não gostamos em nós. Mais ainda: é-nos complicado querer ver o que temos que não é bom. Seja isso um defeito, uma característica da nossa personalidade, uma dor antiga ou alguma espécie de raiva ou de tristeza.

 

Temos um desejo secreto, e profundamente infantil, de ser habitados só por coisas boas e por bons sentimentos. Não queremos os avessos das coisas. Não queremos a tristeza que nos deixa sem chão. Não queremos a raiva que nos faz doer a barriga e a alma. Não queremos o medo que nos prende as vontades e não nos deixa acreditar no futuro. Não queremos olhar para o que nos fizeram de mal, para o que nos fizemos de mal com a desculpa pequenina do “já passou”.

 

Mas a verdade é que há muita coisa que não passa. Aliás, tudo o que é não visto aumentará de tamanho até nos obrigar a olhar. E um olhar forçado nunca será um processo meigo ou pouco tumultuoso.

 

Ficamos doentes pelas coisas que não dizemos. Pelos traumas que não processamos. Pelas lutas que não quisemos travar. Pelos lutos que não fizemos. E, quando menos esperamos, vem o corpo avisar-nos com uma dor aqui ou ali. Com uma doença que nem combina com o nosso estilo de vida saudável.

 

Estamos doentes da alma. Alienados de nós próprios, ainda que ilusoriamente conectados com as dores dos outros. Que saberemos das dores dos nossos se deixámos órfãs as nossas? Que cura podemos oferecer se as nossas feridas apodrecem sem colo e sem amor? Que luz podemos ser se vivemos de coração às escuras para tudo o que gostávamos de não sentir?

 

Falta-nos sentir. Falta-nos atravessar o deserto imenso do que somos. Falta-nos a coragem para ter febre de viver. De viver tudo. Até o insuportável. Porque é precisamente isso que nos vai fazer perceber que caminho travar.

 

Falta-nos adotar a nossa alma como uma vocação. Como um propósito de vida único e último.

 

Enquanto não cuidares da tua alma não saberás quem és.

 

Enquanto não te atreveres a sentir tudo o que tens aí dentro, todos os caminhos vão fazer-te ficar cada vez mais perdido.

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Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

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