De que é que tenho mais saudades? De tudo!

Crónicas 24 fevereiro 2021  •  Tempo de Leitura: 2

Tenho saudades de não saber o que a vida se estava a preparar para nos dar. De não imaginar que, enquanto eu fazia planos, o mundo se preparava para nos puxar o tapete e para nos deixar sem chão durante uns bons meses.

 

Às vezes ainda me rio quando penso nalguns dos dias que existiram antes destes. Em que caminhava ruas fora de sobrolho franzido, maldizendo tudo e todos, o excesso de movimento, o exagero de trânsito, a falta de tempo para parar, a falta de tempo para descansar, para perceber o que era mais importante em cada dia. Mal sabia eu. Mal sabíamos nós.

 

Não precisamos de ser hipócritas. Se soubéssemos o que lá vinha, teríamos feito igual ou ainda pior. Teríamos ficado rendidos aos mesmos queixumes, às faltas deste ou daquele pormenor que pareciam deixar-nos buracos por preencher, por ocupar.

 

A vida preparava-se para nos suspender. E não sabíamos. Nem sequer imaginámos a possibilidade dos eventos que nos têm marcado a todos (tão intensamente).

 

As saudades são imensas.

 

Outras vezes são pequenas e cabem nas linhas de uma mão.

 

Outras vezes têm a forma daquelas penas soltas que às vezes encontramos no chão e que já só pertencem ao contorno de um pássaro.

 

Saudades de quê?!

 

De tudo.

 

Dos beijos do sol na cara sem máscara.

 

Dos beijos dos que, agora, nos suspenderam e nos adiaram.

 

Dos abraços apertados que nos tiravam o ar durante uns segundos.

 

Dos copos poisados em cima da mesma mesa, sem medo de tocar, sem querer, num que não fosse o nosso.

 

Do barulho dos talheres a arrumar-se no fim de uma noite entre garfadas de boa comida, bons amigos e boa conversa.

 

De tropeçarmos uns nos outros, correndo o risco de ativar os níveis de mau humor de alguém (mas nunca um vírus potencialmente letal).

 

Das mãos dadas.

 

De agarrar nas nossas crianças ao colo. De as esborrachar com carinho.

 

Das viagens planeadas. Dos destinos apontados nos mapas. Das mochilas às costas para ir conhecer o mundo ou para ir, só, ali ao Algarve ou ao Porto.

 

Saudades de tudo o que podia ter acontecido. De tudo o que podíamos ter feito.

 

Talvez tudo aconteça, mesmo, por uma razão. Havemos de encontrar a nossa.

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Marta Arrais

Cronista

Nasceu em 1986. Possui mestrado em ensino de Inglês e Espanhol (FCSH-UNL). É professora. Faz diversas atividades de cariz voluntário com as Irmãs Hospitaleiras do Sagrado Coração de Jesus e com os Irmãos de S. João de Deus (em Portugal, Espanha e, mais recentemente, em Moçambique)

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