Rezar a vida: Diálogos do coração

Lavar o dia 19 junho 2021  •  Tempo de Leitura: 8

Cf. Lc 24, 13-33.

 

Pergunto-me quantas vezes caminhas ao meu lado sem que me dê conta da tua presença porque os meus olhos estão impedidos de te reconhecer. Seguramente, mais do que as que gostaria de admitir.

 

Perguntas-me então:

- Que palavras são essas que discorrem no teu coração?’

 

Respondo rispidamente ao perceber que o meu desalento não passa despercebido aos teus olhos:

- Deves ser o único forasteiro a ignorar o que se passa.

 

Insistes com ternura:

- Que foi?

 

Paro entristecida, como em tantos momentos anteriores, porque esta é uma das consequências da tristeza. Faz-nos parar, faz-nos erguer muros, faz-nos retrair para dentro do nosso umbigo. Como uma concha dura e estéril que julga conter uma pedra preciosa e não a quer partilhar com ninguém.

- Que foi?, voltas a perguntar. Não deixes que o teu desalento, medos e sofrimento te fechem ao diálogo comigo.

 

Surpreendo ao perceber que me conheces bem melhor do que eu a ti.

- De onde me conheces? Porventura andámos juntos na escola, na faculdade ou trabalhámos juntos em algum lugar? Ou terás vivido em alguns dos países por onde a vida me levou?

- Fui eu que te sonhei e criei, fui eu que te amei e dei a minha vida por ti, respondes com uma mansidão que começa a abrasar o meu coração. Perplexa fixei o meu olhar no teu, mas não compreendi.

- Que foi?, perguntas pela terceira vez.

 

A medo, respondi:

- Há tanto ruído no meu coração que deixei de conseguir ouvir a voz daquele em quem depositei a minha confiança. “Levaram o meu Senhor e não sei onde o puseram” (Jo 20, 13).

- Tens a certeza de que já não a ouves?

- Tenho ou se ainda a ouço, já não a reconheço.

- Não fales abstratamente. Dá nomes  concretos aos ruídos que perturbam e que te roubam a paz.

- Não estou segura das decisões que tenho tomado nestes últimos meses, sobretudo no respeitante à minha vida profissional. Não consigo discernir se o caminho que trilho é aquele que permitirá que se faça a vontade de Deus para mim. Consome-me ter deixado derrapar a entrega da tese e de sentir que está cada vez mais longe a possibilidade de o vir a fazer. Sinto que, como Judas te traí e como Pedro te neguei, ao abandonar um projeto que construímos juntos ao longo de cinco anos. Quis abraçar todos os projetos que interpretei como sinais da tua providência e acabei por não conseguir dar resposta ao nenhum, submersa em prazos que não cumpri e oportunidades que não aproveitei. Luto interiormente, como Paulo, ao perceber que “em mim, que quero fazer o bem, só o mal está ao meu alcance” (Rm 7, 21). A minha vida está tão desordenada como ruidoso está o meu coração. Se é verdade que continuo a caminhar, também é verdade que transporto todo este peso comigo.

- Deixa por agora e diz-me, leste os evangelhos?

- Sim. Li, mas porquê?

- Lembras-te de Jesus ter dito que “não são os que têm saúde que precisam de médico, mas os que estão doentes (Mc 2, 17)?

- Sim, perfeitamente. É das palavras que mais me comovem porque mostram bem a misericórdia de Jesus por aqueles que se perdem pelo caminho.

- Não será que te dirige hoje essas mesmas palavras?

 

Senti mais uma vez que algo me abrasava.

- Pensa nisso, disseste suavemente. Bem, vou seguir para diante.

- Espera, não vás, supliquei. Fica comigo!

- Pedes-me para ficar contigo, mas acaso sabes quem “Eu sou” (Ex 3, 14)?

- Sei que conheces bem as Escrituras e que com elas consegues abrasar o meu coração. Sei também que consegues ler o que nele tento ocultar e que as tuas perguntas me interpelam, por isso, penso que és um sacerdote, um dos trabalhadores que Deus chamou para a sua vinha.

- Tudo o que dizes é verdade, mas serei apenas isso para ti? Ó mulher sem inteligência e lenta de espírito para acreditar em tudo quanto te foi anunciado.

- Não me parece nada próprio falares nesse tom. Fiz-te por acaso algum mal?

- A mim não, mas a ti própria sempre que fechas o teu coração ao amor e à graça de Deus.

- E quando faço isso?

- Diz-me tu.

- Quando rezo menos, quando não me alimento da sua Palavra ou mesmo quando a ouço, mas não deixo que ela se faça no concreto do meu quotidiano. Quando na minha autossuficiência decido impulsivamente sem antes discernir com Deus e quando orgulhosamente acho que tudo o que faço e alcanço é mérito meu, esquecendo que trago gravada no peito a marca do meu criador e que em tudo sou auxiliada pela sua abundante graça. Quando o meu coração ingrato esquece que sou chamada a amar os outros como Jesus nos amou (cf. 15, 12).

- Estava a ouvir-te e lembrei-me dos dois discípulos a caminho de Emaús, disseste. Vinham de Jerusalém desalentados porque puseram a sua confiança num Jesus feito à imagem deles. Não lhes cabia na compreensão que o Messias tivesse de sofrer para entrar na sua glória. De tal modo vinham a acalentar a sua desesperança que nem se deram conta de que o Ressuscitado caminhava com eles, cumprindo a promessa de que estaria com eles até ao fim dos tempos (cf. Mt 20, 30). Foi preciso que Jesus lhes recordasse as Escrituras, começando por Moisés e seguindo por todos os Profetas. Depois de os ter despertado pela Palavra, seus corações se foram dispondo àquele forasteiro que, finalmente, reconheceram quando viram repetidos os mesmos gestos da bênção e da fração do pão. Seus olhos abriram-se então.

 

Enquanto ouvia o relato deste episódio que tem o dom de renovar a minha esperança, meu coração começou a bater alegremente. Disse:

- De repente sinto-me como o discípulo que acompanhava, Cleofas, que permanece até hoje anónimo, porque também me arde o coração enquanto falas.

- Talvez o anonimato desse discípulo seja mesmo para que hoje possa chamar-se Raquel e amanhã Paulo ou Nuno, Xana ou Susana. Bem, vou seguir para diante.

- Não vás. Fica comigo. Fala-me mais sobre o meu Senhor.

- Raquel, Raquel, “andas inquieta e perturbada com muitas coisas; mas uma só é necessária” (Lc 10, 41).

- “Rabbuni” (Jo 20, 16)! És mesmo tu! Fica comigo, “meu Senhor e meu Deus” (Jo 20, 28).

- Não me detenhas, mas vai ter com os meus irmãos (cf. Jo 20, 17), porque é quando te abres aos outros, quando sais de ti, quando reconheces que o caminho que conduz ao Pai não se faz sozinho, que recebes a minha alegria para que a tua seja completa (cf. Jo 15, 11). A paz esteja contigo. Recebe o Espírito Santo (cf. Jo 20, 21-22), disseste e nesse mesmo instante desapareceste da minha presença. Mesmo já sem te ver, nunca te senti tão presente.

Raquel Dias

Cronista "Lavar o Dia"

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e apaixonada pela escrita. Voluntária na paróquia de São Julião da Barra. Ovelha perdida que reencontrou o caminho. Hoje, de coração cheio e grato, procura transmitir a alegria do Evangelho a todos os que cruzam o seu caminho. \"Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?\" (cf. 8. Evangelii Gaudium)

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