Que tipo de Natal és tu?
«O milagre que salva o mundo, o domínio dos assuntos humanos da sua ruína normal e natural, é, em última análise, o facto da natalidade, na qual a faculdade de ação está ontologicamente enraizada. É, por outras palavras, o nascimento de novos homens, cuja ação eles são capazes de realizar em virtude de terem nascido. Só a experiência plena desta faculdade pode conferir aos assuntos humanos a fé e a esperança, as duas características essenciais da experiência humana, que a antiguidade grega ignorou completamente. É esta fé e esperança no mundo que talvez encontre a sua expressão gloriosa e concisa nas poucas palavras com que o Evangelho anunciou a alegre notícia do Advento: “Nasceu-nos um menino”.»
Assim, Hannah Arendt conclui o capítulo da Vida Ativa na obra A Condição Humana (título original: The Human Condition). Nascida Johanna Arendt em Linden, Alemanha, a 14 de outubro de 1906, fez 50 anos que morreu no passado dia 4, em Nova Iorque, Estados Unidos (1975). Hannah foi uma filósofa judia, das mais influentes do século XX.
Hannah não utiliza o "nascimento", mas a "natalidade" para se referir à capacidade humana de criar o inesperado na história, da qual o nascimento é o primeiro ato. Como em português "natalidade" sugere apenas demografia, vou usar "natividade", termo que usamos para o nascimento de Jesus, porque percebemos melhor o conceito de "início": poderia não estar cá, mas estou, e isso muda a história.
Ao ler estes textos, uma série de questões caíram-me em catadupa: Como seria o mundo se eu não tivesse nascido? Que novidade sou eu? O que mudaria se não existisse? Percebo-me como um começo? A família percebeu? A escola? Os amigos? Os colegas de trabalho? Olhando para este tempo natalício, talvez nos percebamos mais como consumidores. Porém, nem eu nem tu não surgimos do nada, recebemos a vida para criar, somos um começo.
A autora inspira-se numa passagem de Agostinho: «Creatus est homo ut esset initium» (O homem foi criado para ser um princípio, Confissões XI, 31), na qual ela reflete sobre a criação do tempo por um Deus fora do tempo, defendendo que o homem é a causa do tempo precisamente porque nasce, porque começa a existir. Até Deus, na narrativa cristã, nasce e, assim, dá um novo rumo à história a partir do interior da história, como a cada um de nós é dado a fazer.
Mas quando esta fé na natividade desvanece, a morte torna-se uma evidência, como aconteceu com todas as civilizações que se desmoronaram ao longo da história. Isto demonstra-se hoje pelas guerras, pelo rearmamento, pela taxa de suicídio entre os jovens, pela crise da natalidade, pelo consumismo e pela destruição da Criação.
Na narrativa do Evangelho, ninguém repara no nascimento de Deus, porque não há nada de extraordinário nisso, e é precisamente isso que é extraordinário! Ele nasceu, celebra um aniversário, como todos nós. Santo Agostinho sempre disse que não são os tempos que são bons ou maus, mas sim nós. E esta criança mudou de facto a história. É por isso que ainda o celebramos.
Celebrar o Natal, crentes ou não, significa lembrar que fomos feitos para começar e não para terminar. Somos seres que sabemos que vamos morrer, mas, mais ainda, sabemos que devemos criar coisas que só nós podemos inaugurar e mais ninguém o pode fazer por nós.
Uma cultura que valoriza o nascimento de Jesus não transforma a criança num ídolo - o que, na verdade, é egoísmo -, mas antes na protagonista de um novo começo. Ou seja, procura consciencializar a criança e, por conseguinte, responsabilizá-la pela vida que recebeu, para que possa viver a vida a sério e não ser uma mera consumidora da mesma, como vejo tantas crianças e adolescentes a fazer – e certos adultos também -, vivendo como se tudo lhes fosse devido, e não dado.
Porque um Menino nos foi dado. Uma vida me foi dada...
Que tipo de Advento está a ser o teu?
Que tipo de Natal és tu?