Transhumanismo vs. Transpersonalismo

Crónicas 20 fevereiro 2025  •  Tempo de Leitura: 6

A crescente complexidade do mundo não é novidade, mas uma direção intrínseca, traçada desde o início do universo e que culminou na consciência manifestada pela pessoa humana. Hoje, essa complexidade transborda num vasto oceano de informação, que nos impede de acompanhar cada detalhe, mesmo quando temos acesso a tudo. Por isso, quando criámos os computadores, o propósito era criar tecnologia que nos ajudasse a lidar com o aumento cultural e intelectual do pensamento. Todavia, o êxito dessa empreitada levou-nos a questionar se não deveríamos transcender os limites do humano, incorporando a tecnologia em nós – num audaz processo de transhumanização.
Um convite para repensar o nosso próprio ser.
 
 
O vasto mundo da informação desperta na nossa consciência uma sede de profundidade, levando-nos a explorar a realidade que habita dentro de nós, entre nós e ao nosso redor. Não se trata de auto-centrismo, mas de uma auto-compreensão que nos permita enfrentar a complexidade sem sucumbir ao desespero. Todos nutrimos o desejo de dotar cada momento da nossa vida de sentido e significado, almejando ser melhores. Os prodigiosos avanços tecnológicos incitam-nos a imaginar que, se a incorporássemos em nós – como transhumanos – poderíamos alcançar essa perfeição, mas não da maneira como, por vezes, a imaginação cinematográfica nos induz a crer.
Uma reflexão que nos convida a olhar para dentro e para além.
 
 
A ideia do transhumanismo germina nos anos 1950, quando o biólogo Julian Huxley, no seu livro “Religião sem Revelação”, afirmava que «a espécie humana pode, se desejar, transcender-se a si própria — não apenas esporadicamente, num indivíduo de um modo, noutro indivíduo de outro modo — mas na sua totalidade, como humanidade. Precisamos de um nome novo para esta crença. Talvez transhumanismo sirva: homem que permanece homem, mas transcendendo a si próprio, através de novas possibilidades de e para a sua natureza humana.» Note-se que Huxley não defende a incorporação física da tecnologia no nosso corpo. Basta utilizarmos ferramentas que aprimorem a natureza humana, fazendo da tecnologia a base sobre a qual se edifica a filosofia transhumanista.
Um olhar que desafia a literalidade e celebra a essência.
 
 
Ao testemunhar a emergência da inteligência artificial – que expande e acelera o nosso pensar, assim como um teclado agiliza a escrita – interrogo-me se não nos encontramos numa fase crítica deste transhumanismo. Esta perspetiva difere daquela que vê a inteligência artificial como algo alheio ao humano, como uma mente alienígena, em vez de uma co-inteligência que intensifica a nossa percepção consciente, ajudando a mente a navegar num mundo repleto de informação.
 
E.M. Esfandiary, um dos pioneiros filósofos do transhumanismo, afirmava no seu livro de 1989, “És tu transhumano?”, que «os sinais indicativos do estado transhumano incluem próteses, cirurgia plástica, intensivo uso das telecomunicações (…)». Este uso intensivo tem, de facto, intensificado a faceta transhumanista, embora nem todos o interpretem de forma negativa. Daniel Crevier, empresário canadiano e investigador em inteligência artificial, defende que a inteligência artificial se coaduna com a crença na ressurreição e na imortalidade. As nossas mentes necessitam, invariavelmente, do cérebro – essa realidade física – para suportar a memória e processar informação antes de articular qualquer pensamento. E, se Cristo ressuscitou num novo corpo, por que negar que, através da tecnologia, possamos trilhar um caminho semelhante? É como se o ser humano transhumanizado, o homo techno sapiens, se aproximasse da experiência da ressurreição rumo ao Reino de Deus.
Uma ponderação que convida à reavaliação dos limites do possível.
Porém, existe uma outra via.
Um ponto de inflexão que nos desafia a olhar para novos horizontes.
 
 
Há quem desconfie de um percurso evolutivo que se fundamente na artificialização da nossa essência. Há ainda quem acredite que a tecnologia nos impulsiona apenas a dar o salto do sono no qual nos encontramos para uma realidade do que poderíamos ser. Mas a verdade é que ainda não atingimos esse patamar; o verdadeiro modo de ser revela-se no devir contínuo, na metamorfose perpétua.
Uma interrogação que incita à dúvida e à descoberta.
 
 
Nesse devir humano insere-se a perspetiva crística, emanada da experiência cristã. Nas palavras da teóloga Ilia Delio, no seu livro “The Not-Yet God” — «Novas Pessoas a co-criar um cosmos transpersonalizado.» –, a energia divina do amor que nos habita convoca-nos a unir todas as coisas.
O transhumanismo ambiciona usar a tecnologia para transcender os nossos limites, mas para quê? Para transcendermos a nós próprios, encerrando-nos num ciclo vicioso de auto-reflexão.
Em contrapartida, o transpersonalismo aposta no amor como via para ultrapassar o eu isolado, unindo tudo e todos, e abrindo-nos à contínua criação que se origina dos relacionamentos. Podemos, pois, usar a tecnologia para nos auxiliar a sermos transpessoais, mas sem depender dela, pois, no amor, somos todos interdependentes.
 
 

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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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