Revolução da Ipseidade

Crónicas 1 maio 2025  •  Tempo de Leitura: 5

Há palavras que são relíquias enterradas no léxico de uma certa língua, e que esperam o momento certo para serem redescobertas e devolvidas ao mundo com o brilho da sua pertinência esquecida. Seity é uma dessas palavras. De origem inglesa e arcaica, — quase fantasmagórica nos dicionários contemporâneos — esta palavra contém um potencial inesperado para nos ajudar a pensar de forma mais clara e profunda sobre a consciência, a liberdade e o ser. Em Português, traduzimo-la com alguma hesitação como ipseidade, um termo que mantém o sabor do latim e preserva a sua dignidade filosófica. Num mundo que tende a uniformizar e diminuir o léxico aos termos que todos já entendem, que valor se esconde por detrás de palavras esquecidas como esta?
 
Encontrei-a ao ler o "Irriducibile" de Federico Faggin, físico e engenheiro que evoluiu dos circuitos dos microprocessadores que inventou (na altura para a Intel) pelo mistério da mente consciente. Ele oferece-nos uma visão radical: a consciência não emerge da matéria, mas, pensando de modo inverso, é o fundamento de toda a realidade material. Não é um epifenómeno, mas a sua origem. Neste contexto, a noção de ipseidade ganha vida. É a centelha do “eu-sou” que pulsa em cada campo quântico que tece a realidade a partir da surpresa da indeterminação, um centro experiencial que se reconhece a si mesmo, distinto, vivo e livre.
 
A ipseidade é a assinatura única do ser. Não é só identidade própria, mas identidade encarnada na própria experiência. Uma identidade que sente, que se surpreende e que escolhe. E é nesta escolha — sempre incerta, sempre indeterminada — que se revela a liberdade. A incerteza, tantas vezes temida como falha do conhecimento, torna-se aqui condição da criatividade. Aquilo que é indeterminado não é vazio, mas fértil. A liberdade brota precisamente da impossibilidade de tudo prevermos. Por isso, o universo, tal como a consciência, dança ao ritmo do possível.
Não deixa de ser curiosa — e até desconcertante — a semelhança fonética e etimológica entre seity e seita. Ambas partilham raízes no latim se- (separar, apartar), sugerindo um gesto de individuação e de distinção face ao todo. A seita, no seu sentido religioso, é um grupo que se destaca da ortodoxia, afirmando uma identidade própria — frequentemente em tensão com o consenso. Já seity, enquanto qualidade de ser-em-si-mesmo, evoca a singularidade radical do sujeito, a centelha interior que não se deixa dissolver na massa indiferenciada do mundo. Mas aplicar à ipseidade o estigma de sectarismo como fazemos com as seitas seria um erro categórico. Pois, a consciência-de-si não é exclusivismo, mas fonte de comunhão genuína, porque só quem se reconhece no Uno pode encontrar o outro sem se perder, encontrando-se a si mesmo no outro. Assim, embora as palavras partilhem um gesto original de separação, os seus destinos semânticos são distintos: a seita pode isolar; a seityrevelar — e, ao revelar, liberta.
 
Num mundo em que o determinismo ainda domina os discursos oficiais da ciência, recuperar uma palavra como ipseidade é mais do que um acto linguístico: é um gesto filosófico. É dizer que cada elemento do universo é mais do que uma função, ou mais do que uma soma de partes. É um foco de interioridade que se manifesta, que se transforma e que, por isso mesmo, escapa à rigidez da definição. Ipseidade não só rima com liberdade, dignidade, ou singularidade, como também as sintetiza com autenticidade.
Faggin propõe uma visão cosmológica onde cada entidade possui uma centelha de consciência, uma unidade informacional dotada de vontade e capacidade de aprender. Esta visão não nos convida a abandonar a ciência, mas a alargá-la e a inverter o domínio do visível pela abertura do invisível. Uma ciência que inclua o sujeito no valor que dá ao sentido das coisas, em vez de o reduzir a um comportamento observável. Aqui, ipseidade deixa de ser um termo raro para tornar-se essencial.
 
Talvez seja o momento de redescobrir esta palavra e trazê-la de volta ao nosso léxico — polir as suas sílabas e deixá-la brilhar ao sol da escuta atenta. Ipseidade, uma identidade sentida, não imposta; uma presença que sabe de si e se reconhece nos outros. O convite da revolução da ipseidade talvez seja recordar-nos que ser é sempre mais do que parecer, e que no mistério de sermos nós próprios reside o espanto que alimenta a consciência.
 

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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