Coração Puro

Crónicas 26 janeiro 2023  •  Tempo de Leitura: 8
«Enfim, o que se nos pede para fazer?» — num mundo que precisa tanto de paz. Esta é a derradeira questão que todos nos fazemos e faz, também, o Papa Francisco na sua mensagem pelo Dia Mundial da Paz apresentando uma proposta — «Antes de mais nada, deixarmos mudar o coração …» — fazendo-me recordar o versículo 12 do Salmo 51 — «Cria em mim, ó Deus, um coração puro; renova e dá firmeza ao meu espírito.» O que podemos fazer pela Paz, que depende de tantas coisas fora do nosso alcance, talvez comece por desenvolvermos um coração puro.


A Paz é como uma moeda de duas faces: uma exterior e outra interior. Num mundo conturbado em que vivemos, a vida de cada um pode conseguir fazer pouco relativamente à face exterior da paz. Porém, na sua “Arte de Purificar o Coração”, o cardeal Tomáš Špidlík diz que ao purificarmos o coração — «a alma pode voltar à paz interior — Pois, a pureza do coração é — «a condição da oração e da tranquilidade da vida.» — Quer isso dizer que todos podemos chegar à paz interior se trabalharmos esta purificação do coração. A questão está em como fazê-lo e a proposta seria através de uma Prática Interior diferente da prática exterior. 

A prática exterior compõe-se de gestos voltados para fora de nós, vivendo daquilo que podemos fazer para não faltar ao amor aos outros evitando, assim, quebrar a paz interior. A Prática Interior vive-se na solitude quando as tentações surgem interiormente, e nós agimos para as combater de modo a sairmos amadurecidos e purificados no coração. A essa prática interior chamamos hesicasmo.


O Hesicasmo provém da experiência dos Padres do Deserto para viver no seu quotidiano a palavra do Evangelho de S. Mateus (6, 6) — «…entra no quarto mais secreto e, fechada a porta, reza em segredo a teu Pai…» — Por isso, o hesicasta procura espaços de quietude, silêncio, por vezes imerso na natureza para trabalhar, interiormente, os seus pensamentos, purificando o coração através da parte mental. O facto de ver muitas pessoas nos transportes públicos, de certa forma, solitárias, voltadas para o seu ecrã ou leitura, leva-me a pensar se em vez de nos voltarmos para o entretenimento para ajudar a combater o tédio, será que esses momentos representam espaços oportunos para actualizar a experiência hesicasta no século XXI? Porém, talvez seja fundamental compreender quais os passos universais dessa experiência.


Diante de cada dificuldade, mau pensamento sobre algo ou alguém, o hesicasmo convida-nos a rezar a “Oração a Jesus” — «Senhor, Jesus Cristo, tem piedade de mim.» — e como diz Špidlík num segundo pequeno livro “Rezar no Coração” de iniciação à oração — «aquele que une a oração ao batimento do coração não poderá mais cessar de rezar porque a oração torna-se como uma função vital da sua existência.» Seria semelhante à impressão que as pessoas tinham de S. Francisco: não rezava; tinha-se tornado oração. Mas a ideia de coração não se restringe ao órgão que bombeia o sangue pelo nosso corpo. A pupila dos nossos olhos é o portal entre o mundo exterior e interior de cada pessoa. O coração como pulsar da vida, corresponde desde a Antiguidade à totalidade do nosso ser. Por isso, não poderíamos pensar que o coração (totalidade-do-ser) pudesse ser o portal entre o mundo interior e o espiritual que está para além do tempo e do espaço? 

Prestar atenção a um coração puro é um processo psicológico com cinco fases que precisamos de ultrapassar:
 
  1. Sugestão — uma simples ideia orientada para o mal.
  2. Conversa — um colóquio com a ideia sugerida em vez de a esfumar da mente.
  3. Combate — uma reacção da alma (todo o nosso ser) que procura libertar-se do pensamento que não nos larga a mente.
  4. Consenso — quando ficamos cansados de combater, cedemos à ideia.
  5. Vício — depois do consenso, a ideia orientada para o mal cria raíz em nós e repetimos o que impede ter um coração puro.
 
Pensamos que as sugestões são crimes, mas não é necessário. Basta uma simples crítica que não leva a lado algum. A conversa interior muitas vezes acontece sem nos darmos conta disso, basta manter a sugestão presente, sem nada fazer para a afastar da mente. O combate surge quando nos sentimos incomodados com a sugestão, querendo dizer que já houve conversa e, por exemplo, começamos a sentir vontade de partilhar a crítica com alguém. O consenso realiza-se na exteriorização da crítica. É um ponto sem retorno. O mais que podemos fazer é assumir a nossa culpa e esperar pela misericórdia de Deus e do outro. O vício acontece quando a sugestão deixa de ser ocasional, tornando-se num estilo de vida. Nesse caso, os outros começam a aperceber-se que nos tornámos mais críticos em relação ao que conheciam de nós.


Trabalhar o nosso interior para termos um coração puro é um passo importante, mas a maior parte de nós reconhece que manter o coração puro é a parte mais difícil. Depois, pegando novamente no exemplo da crítica, quer dizer que não devo dar a minha opinião quando vejo as coisas a moverem-se no sentido contrário da realidade, da verdade, ou do amor? Manter o coração puro é ficar calado?


Uma vez um amigo partilhou-me que um dia, um colega de escola apercebeu-se de que ele ia à missa e confrontou-o com isso em sentido crítico — «O quê!? Tu vais à missa?» — ao que ele respondeu — «Sim, porquê? Tu não vais?» — Ou seja, manter o coração puro sem esconder a realidade (por vezes dura), ou a verdade, com amor, pode passar por despertar no outro o desejo de ter, também, o coração puro. Podemos oferecer uma sugestão que purifica, estimular uma conversa interior que ilumina, partilhar um consenso daquilo que a procura por um coração puro fez em nós, e desenvolver as virtudes para ultrapassar os nossos vícios. Ter um coração puro é uma escolha. Basta dar o primeiro passo, repetindo com voz ou em silêncio — «Senhor Jesus Cristo, tem piedade de mim.»


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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