Paz Interior

Crónicas 12 janeiro 2023  •  Tempo de Leitura: 7
«Colocar de novo no centro a palavra “juntos”. Com efeito, é juntos, na fraternidade e solidariedade, que construímos a paz, garantimos a justiça, superamos os acontecimentos mais dolorosos.» — Este é o convite que o Papa Francisco fez na sua mensagem para o Dia Mundial da Paz. “Juntos construímos a paz” parece um cliché que nunca se realiza. Será que a razão está na paz interior que ainda não atingimos pessoalmente, e daí a dificuldade de construirmos juntos uma “paz” que perdure no tempo?


Chou Shujen ou Lu Xun (1881-1936), escritor chinês e pai da literatura moderna na China escreveu nos “Epigramas de Lusin” que — «Aquilo a que chamamos “paz” é um intervalo entre guerras.» Quando a paz que construímos é exterior, feita de acordos, compromissos, cedências, um dia, quem a fez já não está mais entre nós e o que interiormente não foi trabalhado para se transformar em cultura, ficou para ser feito pelas gerações seguintes que tendem a esquecer o passado. Na guerra contra a Covid-19, não havia uma cara humana associada à causa, mas uma relação entre nós e a natureza onde este não é o único vírus que desconhecíamos. Por isso, num esforço sem precedentes na nossa história, em tempo recorde conseguimos uma vacina, possibilitando que em dois anos voltássemos a alguma normalidade. No caso da guerra entre a Rússia e a Ucrânia, existem caras humanas em jogo e tudo o que poderíamos conseguir “juntos” demorará muito mais tempo. Pois, no primeiro caso, cada um podia contribuir para superar a situação pandémica na paz interior, mas no segundo caso, é mais difícil atingir esse nível pelas mudanças exigirem transformações interiores em pessoas concretas. Será preciso que tomemos a iniciativa de ir para além de nós próprios e sair da zona de conforto. E encontramos um exemplo destes em Mildred Norman (1908-1981) ou mais conhecida por Peace Pilgrim.


Em 1952, depois de um casamento infeliz, Mildred decide fazer o Trilho de Appalachian de 3300 km e ser a primeira mulher na história a percorrê-lo. Durante o trilho, ela teve uma intelecção (compreensão interior) que acabaria por guiá-la para o resto da sua vida. Ciente do ambiente de guerra que assombrava (e assombra ainda) o mundo, em 1953, Mildred desfaz-se de tudo o que possui, incluindo o seu nome, escolhendo um novo. Numa túnica azul imprime “PEACE PILGRIM” (Peregrina da Paz) e decide caminhar até que a humanidade viva em paz. Caminhou durante 28 anos até morrer, percorreu mais de 40230 km, pernoitava onde lhe dessem abrigo, comia quando lhe oferecessem uma refeição e não vivia para nada mais do que caminhar pela Paz. Dos vários pensamentos inspiradores que nos deixou encontramos,
 
«Quando encontras a paz dentro de ti, tornas-te o tipo de pessoa que pode viver em paz com os outros.»«Quando um número suficiente de nós encontrar a paz interior, as nossas instituições tornar-se-ão pacíficas, e não haverá mais ocasião para a guerra.»
O que seria do mundo se mais pessoas seguissem o exemplo de Peace Pilgrim, isto é, encontrassem formas originais de chamar a atenção das pessoas e sociedade para a necessidade premente de caminharmos para a Paz?
 

Se como dizia Lu Xun, a paz é como uma pausa entre guerras, uma paz duradoira mergulharia o mundo em silêncio. E o mundo (das pessoas) tem dificuldade em lidar com o silêncio. Apesar do silêncio do mundo não ser ausência de ruído, mas antes a oportunidade de escutarmos a vida presente no mundo natural que o ruído urbano ensurdece. Durante a pandemia, Jian Kang da Universidade College London estudou as diferença sonoras nas cidades antes, e durante a pandemia, partilhando com o New York Times como — «Um dia, eu pensei que os pássaros passavam por dentro da minha casa. Procurei pelos pássaros, mas não os encontrei.» — Afinal, o som vinha de fora da sua casa, mas o silêncio era tal que parecia que a própria natureza entrava pela sua casa adentro. Diante da ausência de paz, e agora que voltámos à normalidade depois da pandemia, podemos ainda crescer muito na capacidade para o silêncio que nos leva à paz interior.


Para muitas pessoas, a ideia de paz interior é meio caminho andado, não pela paz, mas na direcção do tédio. Há quem prefira o ruído como sinal de vivacidade e avanço da vida na direcção da realização e futuro brilhante. Mas não poderá esse ruído vivaz ser um sinal de medo pelo tédio? Talvez tenhamos uma ideia errada do valor do tédio como sinal de alerta para o início de um percurso na direcção da paz interior.
 

Recentemente, Javier Castresana da Universidade de Navarra em Espanha propôs a meditação como forma de ultrapassar o tédio. Segundo Castresana — «O silêncio, quietude e inacção que definem o tédio são também características que definem o estado inicial da pessoa antes da meditação.» — Por isso, continua, — «Podemos abandonar o tédio se começarmos um caminho de crescimento pessoal através do aumento da atenção e percepção (…).» — Na paz interior, essa atenção volta-se para aqueles que estão à nossa volta, aumenta a percepção do seu estado interior e, como Peace Pilgrim, suscita em nós a oferta de um sorriso porque esse é um bom contágio nos tempos que vivemos.


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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