Tempo perdido

Crónicas 17 novembro 2022  •  Tempo de Leitura: 6

Como se distingue o tempo perdido como experimentado ou desperdiçado? Se considerarmos o tempo como a medida da mudança, o que muda quando experimentamos o tempo? E que diferença existe relativamente a sentirmos que desperdiçámos tempo? Será que o tempo desperdiçado é tempo perdido porque nada mudou em nós? E será que o tempo experimentado é tempo perdido a mudar alguma coisa em nós?

Quando lemos as notícias sobre o COP27, a sensação que temos é a de que nada mudou, pelo que podemos pensar terem sido desperdiçados recursos materiais e temporais preciosos para toda a humanidade. António Guterres parecia isolado ao dizer que estamos a caminho do abismo com o pé no acelerador, mas esse pé está a actuar desde 1950 quando se identifica a época da Grande Aceleração. Uma época onde as pessoas passaram a agir como se não houvesse tempo a perder para desenvolver a tecnologia que poderia transformar as suas vidas. Mas o preço pago por esse desenvolvimento tecnológico foram os danos ambientais porque tudo o que se fez foi à custa do consumo de combustíveis fósseis e ninguém conhecia o perigo que isso representaria para o futuro. E agora sabemos? Talvez pudéssemos aprender a lição de que vale a pena perder tempo a pensar antes de agir.

Se nos voltarmos para o concreto da vida, um modo de pensar antes de agir é o que está na génese de criarmos uma lista das coisas que temos para fazer com o fim de perdermos o mínimo de tempo possível a pensar nisso. Existe muita bibliografia que nos ajuda a fazer isso como o "Getting Things Done (GTD) — Fazer Bem as Coisas" de David Allen, e workshops sobre gestão do tempo (eu próprio fiz várias para alunos de tecnologia) e mesmo se a ideia consiste em organizar melhor o nosso tempo, existe sempre aquela sensação de que a própria metodologia (qualquer que seja) pode tornar-se numa fonte de stress e ansiedade. Porém, pessoas como o físico Alan Lightman sugerem uma abordagem contra-intuitiva: perder tempo a desperdiçar tempo para construirmos a melhor versão de nós próprios.

Lightman argumenta pela importância de desperdiçarmos tempo porque a experiência do tempo não estruturada e sem objectivos pode ajudar-nos a mudar algo em nós, mas há uma condição: temos de nos desligarmos do mundo. A procrastinação que muitos se queixam de viver e que lhes impede de fazer as coisas atempadamente, como um curso universitário, pode servir para despertar a nossa criatividade, mas teríamos de nos desligar do mundo digital que nos bombardeia com informação a todo o momento. Procrastinar a pensar sobre a nossa vida, nós próprios e nos valores que nos orientam parece tempo desperdiçado, mas diria ser antes tempo perdido a situarmo-nos no tempo, e lugar onde estamos, para melhor compreendermos a direcção a tomar no futuro.
A mente precisa de viver tempo perdido a libertar-se do excesso de informação e entretenimento para desenvolver o seu lado mais criativo. O lazer de hoje, se estivermos atentos e conscientes disso, é um lazer atarefado com as inúmeras actividades (radicais ou não) que fazemos com a sensação de não termos tempo a perder, ou por estarmos na altura certa da vida para fazer certas coisas porque o tempo passa e não volta atrás. Mas o lazer organizado é diferente do lazer como tempo perdido a criar o espaço para a contemplação, seja essa de índole mais espiritual ou intelectual.

«Não tens tempo a perder.» — continua aquela voz dentro da nossa cabeça a dizer. — «Tanta coisa para fazer, e tão pouco tempo.» — dizia Jack Nicholson como Joker no primeiro filme do Batman que vi quando era jovem. E para muitas pessoas, essa postura parece-lhes ser a correcta para sobreviverem às dificuldades que vivem, seja de que natureza forem. Em linha com grandes urgências de acção como a das alterações climáticas, onde muitos apelam a não perder tempo para tomar as decisões acertadas, não parece fazer muito sentido pensar em tempo perdido diante das urgências.

É difícil lidar com as urgências, mas se voltarmos à percepção do tempo como medida da mudança, uma urgência pode levar-nos a reagir à mudança que o momento presente exige diante de nós. Por isso, por vezes, temos de perder tempo com as urgências e, talvez, perder tempo a pensar a posteriori nas razões dessas urgências caso verifiquemos que dependiam da orientação que demos à nossa vida e não tanto por via daquilo que os outros exigiram do nosso tempo. Por vezes, perder algum tempo a tomar consciência das nossas escolhas significa devolver à vida a linfa que provém dos momentos de pausa, paragem e respirar um pouco. Ninguém perde tempo a respirar, mas tempo perdido com o que tem mais valor pode dar-nos um novo respiro.


Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em https://tinyletter.com/miguelopanao

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
Acompanhe os escritos do autor subscreveendo a Newsletter  Escritos

 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail