Louvor-respiro

Crónicas 29 setembro 2022  •  Tempo de Leitura: 4
Estava uma vez com um filósofo a falar sobre a crise ambiental e ele referia uma ideia de um teólogo que havia lido, Jurgen Moltmann, sobre o facto de vivermos num mundo cada vez mais artificializado. Moltmann que reflectia sobre Deus na Criação dizia que seria relevante humanizar a natureza quanto naturalizar o ser humano para superar esta tendência de uma vida artificializada. Porém, quanto li recentemente que os mineiros de Bitcoin são responsáveis por quase 200 milhões de toneladas de dióxido de carbono num tão curto espaço de tempo de 13 anos, mais do que as emissões de um país como a Colômbia em 2018, recordei Moltmann.


Bitcoin é uma moeda totalmente digital inventada em 2008 por uma pessoa ou grupo desconhecidos. Existe uma cadeia de blocos e a ligação entre blocos tem de ser consistente. Quando se faz a “prospeção do minério-bloco-digital”, o novo bloco só entra na cadeia de blocos (blockchain) se contiver uma “Prova-de-Trabalho” (PoW - Proof-of-Work) que exige dos mineiros um nounce (número usado apenas uma vez) de tal modo que este número ligado ao bloco resultem num valor numérico mais baixo do que o “alvo-dificuldade” (difficulty target) da rede. A prova é fácil de programar, mas o tempo de processamento de computador para a gerar consome uma enorme quantidade de tempo de computação e, consequentemente, consome enormes quantidades de energia. Dessa energia, mais de metade provém de combustíveis fósseis. O preço a pagar para gerar moeda digital é elevado.


Existe muita literatura a alertar para os efeitos nocivos de uma vida artificializada, onde o contacto com a natureza é tão escasso que nem nos sentimos parte dessa, mas à parte. Porém, o papel que a tecnologia digital representa na nossa vida continua a crescer. Recentemente, participei numa reunião de projecto que seria impossível de realizar com a presença de todos naquela data. E, apesar de não ser a mesma coisa, reconheço que alguma troca de ideias é melhor que nenhuma. Ou se não fosse a capacidade de comunicação que os telemóveis oferece, não teria sido possível à minha esposa contactar-me para resolver um problema com a bateria do carro que me prejudicaria imenso se não fosse resolvido com urgência. Por isso, a tecnologia que artificializa a nossa vida não é má em si mesma. Se não fosse a tecnologia, esta reflexão não chegaria ao leitor. Onde está o equilíbrio?


No seu livro “Sonhos Árticos” (não traduzido para português), o escritor americano Barry Lopez partilha que — 
«olhava para oeste na direcção do Mokka Fiord, para uma cadeia de lagos entre duas cúpulas de gesso esbranquiçadas. Além encontrava-se um solo padroado com a tundra mediamente húmida. Os castanhos e pretos e brancos eram tão ricos que os conseguia sentir. A beleza naquele lugar era uma beleza que se sentia na carne. Sentia-la fisicamente, e essa era a razão de ser terrivelmente difícil de nos aproximarmos dela. Uma outra beleza tomaria somente o coração ou a mente.Eu perdi por longos momentos o meu sentido do tempo e propósito como ser humano. Nas paredes de Axel Heiberg encontrei o que conhecia das montanhas quando era criança. Isto é, não existem palavras para expressar o conhecimento recebido das montanhas. Apenas, vagamente, orações.»
 
Parece-me que a nossa naturalização passa por esta capacidade de sentir o mundo natural fisicamente. Tão fisicamente que as palavras tornam-se insuficientes para expressar a profundidade dos momentos onde o tempo desvanece, e da nossa boca brota um louvor orante, mesmo que não saibamos rezar. Um louvor feito de respiro e sem palavras. 



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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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