Aceitar

Crónicas 5 maio 2022  •  Tempo de Leitura: 6

Se pensarmos na pandemia ou na guerra da Ucrânia é natural sermos confrontados com o problema do mal em relação com a bondade de Deus. E não existe idade para que alguém se questione sobre a existência de um Deus sumamente bom diante do problema do mal. Se é omnipotente, não pode fazer alguma coisa? Se é omnisciente, não sabe o mal que está para vir na cabeça de algumas pessoas com demasiado poder sobre os outros? Se é omnipresente, onde está Deus quando o inocente sofre e morre? Quer tudo isto dizer que, na realidade, continuamos a rezar a um Deus em quem não acreditamos, mas fingimos que existe?



Scott Hershovitz escreveu para o The New York Times sobre este dilema, usando a experiência que fez com o seu filho. Não me recordo de nenhuma inspiração semelhante com os meus filhos, mas conhecendo a experiência de vida de algumas famílias, compreendo como a pureza das crianças pode abrir a nossa mente a novas perspectivas sobre Deus. Recordo-me, sim, do dia em que olhei para a foto de uma mulher com o seu filho nos braços, morto por um desastre natural, e ter pensado o mesmo que Rex, filho de Hershovitz — «Se Deus fosse real, ele não deixaria todas aquelas pessoas morrer.» — Uma impressão que justifica para muitas pessoas o desperdício de vida ao acreditar em Deus. Porém, aquela foto suscitou dentro de mim uma outra imagem: a de Maria com Jesus morto nos braços. A famosa Pietà de Michelangelo.



Na pessoa que sofre e morre passei a ver Jesus a sofrer ou morto. Em ”God and the Afterlife”, o médico americano Jefferey Long explora nas histórias que recolheu de cerca de 3000 pessoas, as experiências que tiveram próximas da morte. O traço comum nessas experiências foi o de terem sentido uma presença. As pessoas dessas histórias eram de várias crenças religiosas, ou não tinham qualquer crença, mas todas relataram a esperança que sentiram, o amor e a graça que emanava daquela Presença. Ou seja, não sentiam que o fim se aproximava, mas sentiam antes o começo de uma vida diferente cheia de significado. O problema do mal tem muitas raízes e ramificações não sendo trivial dar uma resposta consensual que todo o ser humano compreenda pela diversidade de experiências e visões do mundo que existem. O que fazer? Aceitar



Aceitar que somos limitados na compreensão da realidade em toda a sua profundidade e que podemos manter sempre a mente aberta a novas intelecções. A extensão da desinformação é tal que as distorções da realidade tornaram-se verdade para algumas pessoas. E com base nessas falsidades fazem-de escolhas irreversíveis como as mortes de covid por falsa informação do estado de vacinação. 
Aceitar que as nossas limitações são a oportunidade que nos é dada de criarmos coisas novas na tentativa de as superar, abrindo horizontes inesperados na existência. Por exemplo, quando queríamos comunicar melhor e mais rapidamente inventámos a internet e, assim, nasceu a existência digital.
Aceitar que não saber tudo significa que há muito para aprender. Quantas limitações provêm do medo de evoluir ou de uma visão curta sobre o nosso potencial. Penso na pintora Lisa Fittipaldi cuja cegueira foi desafiada pelo marido quando lhe colocou pincéis e tinta na mão. As cores e os detalhes nas suas obras de arte desafiam a crença de qualquer um na sua cegueira.


Aceitar pode levar alguns a resignar-se às suas limitações físicas, cognitivas e até espirituais. Não aceitam trabalhar as suas incapacidades de um modo diferente. Querem ir ao ritmo dos outros e da frustração adveniente dessa impossibilidade, impossibilitam-se. Aceitar que os limites são uma qualidade do mundo criado só se torna num mal quando a vida como a desejaríamos termina e parece-nos injusto. Não temos o controlo completo de tudo o que se passa à nossa volta e pensamos que Deus é quem controla. Mas se Deus controlasse tudo o que se passa neste mundo, seria o mundo realmente livre como Deus parece querer?



Parece-me que Deus escolheu não controlar tudo no mundo, mas aceitar as consequências das limitações inerentes à liberdade. Basta pensar como Deus morreu em Jesus, experimentando em si as limitações do mundo. Talvez aquilo que para nós é a morte faça parte da vida do universo. Talvez nos falte aceitar a morte como parte do ciclo da vida. Talvez a sensibilidade à dimensão espiritual humana seja proporcional à capacidade de aceitar o Mistério do paradoxo entre liberdade e constrangimentos. E por muito que nos custe aceitar o problema do mal, não é preciso fingir que Deus existe para o compreender, basta aceitar que Deus vive connosco cada limitação e com o Seu Espírito está, permanentemente, a inspirar-nos a criatividade para nos auto-trancendermos e encontrarmos o sentido na história daquilo que hoje parece não ter qualquer sentido.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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