Biodiversidade

Crónicas 28 abril 2022  •  Tempo de Leitura: 7

Caminhava em direcção à piscina num dia de Verão. Ia arrumar a bomba de água e tinha de fechar uma válvula. Um toque foi o suficiente para espantar uma pequena aranha. Nunca tinha visto uma assim. Era uma espécie nova para mim. Partilhei a foto na aplicação iNaturalist e assemelhava-se a uma aranha-lobo-raivosa. A biodiversidade é uma fonte perene de novidade e contemplação no mundo. Como afecta a nossa vida?

Dentro de nós existem várias microbiota, comunidades de biodiversidade que nos mantêm saudáveis e que, em troca, nós fornecemos um porto abrigado e seguro onde possam sobreviver. Vida dentro da nossa vida que se diminuísse, como diminui a biodiversidade em tantas partes do mundo, a nossa saúde ficaria comprometida. Convivemos com estes organismos, embora os desconheçamos, mas há um nível mais profundo de douta ignorância.

A bota mergulha numa poça lamacenta no meio de uma floresta tropical sul-americana. Por todo o lado vêem-se plantas, insectos e animais que poucos conhecem, mas o biólogo Bruce Means conhece as histórias de quase todas as espécies nas montanhas Pakaraima na Guiana. Quase todas. No planalto do monte Roraima, um Tepui, existem espécies novas de anfíbios que este biólogo com mais de 50 anos de experiência não conhece ainda. E se ele não conhece, ninguém no planeta conhece. Aos 80 anos, Bruce embarca numa expedição filmada pela National Geographic em zonas inexploradas pelo ser humano (disponível no Disney+). Procura novas espécies para mostrar ao mundo como a biodiversidade deve ser protegida, cuidada, respeitada e contemplada. Mas o olhar vivo daquele cientista mostra que a biodiversidade pode ser amada.

A um dado momento do documentário, Bruce apercebe-se de não ter condições físicas suficientes para prosseguir com a restante equipa até ao Tepui inexplorado e reconhece que esta pode ser a sua ultima expedição numa floresta tropical. Numa cena a meio da floresta, pára e diz que sentirá saudades deste silêncio. Por um minuto olha para o infinito e convida-nos a viver com ele aquele momento. Senti que esse foi um momento sagrado. Escutamos o silêncio da biodiversidade e pensei nas manhãs de muitos de nós.
Enquanto a cidade não acorda, mas o sol ilumina os primeiros instantes de cada manhã, muitas vezes ponho-me a escutar o silêncio da biodiversidade através do canto dos pássaros, o cantar do galo, um latido ocasional e o vento que faz dançar as folhas das árvores. Quando me ponho nesta posição de escuta é raro pensar. Nem tenho vontade de pensar, mas viver intensamente aquele momento e acolher o sagrado que ele contém. A perda da biodiversidade causada pela acção humana eliminará este silêncio contemplativo semelhante ao que um cristão pode fazer diante de Jesus num momento de adoração à hóstia consagrada. A perda da biodiversidade é a perda do sagrado da criação e exige um exame de consciência sério da nossa parte.
A biodiversidade não tem valor pela sua utilidade material, mas por nos abrir a um sentido de sagrado que permite desenvolver a dimensão espiritual de todo o ser humano, independentemente da sua experiência religiosa. Até pode acontecer que a biodiversidade nos conduza a um momento de conversão. Um grupo de investigadores liderado por Katherine Irvine do The James Hutton Institute no Reino Unido, sintetizaram os vários estudos que relacionavam a biodiversidade com o bem-estar espiritual. Este último define-se como ligado à experiência de«significado, conexão a algo maior do que nós e, em alguns casos, a fé num poder superior.»
“Poder superior” é uma expressão secular na tentativa de universalizar a experiência espiritual, mas que poder é este? A palavra “poder” indica que se trata de algo que imprime uma dinâmica, mas no caso do bem-estar espiritual, essa dinâmica é interior. E a palavra que mais me ocorre é que esse poder, é o poder do amor. Irvine e a sua equipa encontraram muitos estudos sobre o efeito que a experiência espiritual e religiosa pode ter nas atitudes das pessoas relativamente à biodiversidade, mas não encontraram qualquer estudo que se dedicasse ao efeito inverso, isto é, o efeito da biodiversidade no bem-estar espiritual. Por isso, procuraram essa relação na interpretação de alguns trabalhos nesse sentido.
A biodiversidade produz efeito no bem-estar espiritual, principalmente, através de actividades recreativas na natureza, como escutar o silêncio da biodiversidade, contemplar as estrelas, caminhar, acompanhar numa canoa o fluir de um rio, entre tantas outras. Paul Heintzman da Universidade de Ottawa no Canadá diz que estas experiências dão-nos: um sentido para a vida e ajudam-nos a descobrir o significado último das coisas; uma unidade ímpar com a natureza pela sua beleza e sentido de conexão com os outros que fazem connosco a experiência; um profundo sentido de compromisso relativo a algo maior do que nós; um sentido do todo da vida; e um reforçar das crenças espirituais, princípios, valores éticos, alegria, paz, esperança e sentido de realização. 

A vida frenética onde andamos atrás das tarefas a cumprir pode remover-nos o entusiasmo pela procura dos espaços de aprofundamento do bem-estar espiritual, ou mesmo de união com Deus, através da biodiversidade. Mas de que vale gastar o corpo, a mente e o espírito com tarefas para sustentar a vida que sonhamos ter, se, depois, estamos a comprometer a vivência verdadeira desse sonho? Talvez seja o momento de inverter o sentido das coisas.

O estilo de vida profundo que Deus nos convida a viver coloca o acto produtivo numa vida espiritualmente plena, ou seja, rica de sentido e significado. O Evangelho de S. Mateus convida-nos a procurar o Reino de Deus (Mt 6, 33), mas se através da biodiversidade podemos fazer a experiência da presença de Deus, não o teremos encontrado? O que é preferível encontrar através da biodiversidade? Deus ou o Seu reino? Talvez no silêncio da biodiversidade percebamos que encontramos os dois, numa só experiência.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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