Sofrimento
Por que razão as pessoas experimentam uma maior presença e graça de Deus no meio do sofrimento? Existem santos que se revelam em situações de grande sofrimento como Chiara Badano, ou os mártires monges da Algéria, mas também do sofrimento nasceram Movimentos espalhados por todo o mundo como o dos Focolares após a Segunda Grande Guerra, onde descobriram um estilo de vida particular a partir da experiência de Deus-Amor. Como podemos experimentar Deus-Amor no meio de uma guerra?
Não me recordo onde, mas uma vez li que dos passos que um não-crente pode dar para sentir a experiência que faz o crente, um deles é ir ter com quem está a sofrer. Por que razão? Quando há alguna anos as chuvas torrenciais na ilha da Madeira levaram ao sofrimento e morte de muitas pessoas, recordo-me de ter colocado a questão — “onde está Deus?” — e a única resposta que me parecia lógica era a de que estava com quem sofria, e com quem morria. Não são esses que vivem momentos de limitação extrema, os que mais precisam de Alguém que esteja dentro de si a dar, misteriosamente, a força do sentido que o momento vivido não tem? Nesse sentido, compreendo a razão de ir ao encontro daquele que sofre se quisermos ir ao encontro de Deus.
O sofrimento pode existir por vivermos uma grande incerteza. Recordo quando fui operado ao apêndice. Só no final da tarde de um dia que havia começado às 5h da manhã quando de táxi fui para o hospital é que soube da necessidade de ser operado ao apêndice. As horas passavam e não me chamavam para o bloco operatório. Havia casos mais urgentes de acidentes. Fiquei a noite numa sala de cuidados intensivos onde escutei o lamento incessante de uma senhora. Sofria. E eu, nada podia fazer senão viver o meu sofrimento por ela no silêncio. De manhã fui para o bloco operatório. Nunca tinha feito a experiência de “adormecer” sem saber se iria acordar. Quando abri os olhos estava noutro local e, sem saber a razão, dos meus lábios, em italiano, dizia — «Jesus que vives na santíssima Eucaristia…» Era a única coisa que me ocorria: Jesus. Talvez fosse o fruto da Sua proximidade permanente, íntima e intensa durante aquele momento de sofrimento.
Por que razão Deus faz-se sentir mais próximo de nós quando sofremos? Será o sofrimento um momento sagrado cuja profundidade desconhecemos? Em Jesus, sentindo-Se abandonado na cruz, Deus experimentou o sofrimento. Ele sabe o que significa sofrer sem outra razão senão a de ter amado. E mesmo assim, perde Deus por Deus. É difícil entender na totalidade que horizonte de significado Jesus Abandonado nos abre, mas o Seu rosto passou a ser o rosto de todo e qualquer sofrimento.
Quem perde a vida deixa de sofrer, mas quem não tem sentido para o sofrimento, também deixa de viver. Humanamente, o sofrimento não tem sentido, mas se não o vivermos, os filhos não nascem, o corpo não cresce, e todos os sabores que o mundo nos oferece através das dificuldades perdem o paladar. Uma longa caminhada, escalada ou ida à Lua é difícil. São caminhos que não estão isentos de sofrimento, mas que mantêm na boca do sofredor um sorriso nos lábios. Pois, toda a dor de um sofrimento, seja de que natureza for, é um convite a superar os nossos limites. Um convite a ver para além da dor. E o que pode estar para além do sofrimento e da dor?
Para muitas pessoas está uma noite escura e ausência de som absoluta. Um isolamento profundo que nos leva a duvidar da nossa própria existência. Para outros está uma oportunidade de descobrir uma faceta mais profunda do amor autêntico.
Quando estava no recobro depois da cirurgia em que me tiraram o apêndice, recordo de sentir como cada gesto, palavra, atenção eram uma benção. Só tinha vontade de amar à minha volta por estar vivo, mesmo se sofria com a agulha na mão a receber soro, ou vomitar uma vez por não estar ainda bem. Nada demovia a minha vontade de amar em cada pequena coisa. Cada acto de amor realizado no sofrimento era um sinal da vitória da vida sobre a morte. Quando saí do hospital, os passos era pequenos e dados com esforço. Ao deitar-me reparei que não sentia mais aquela dor de lado que antes me atormentava e chorei. Não eram lágrimas de sofrimento, embora existam lágrimas assim. Era lágrimas de agradecimento a Deus por ter estado próximo de mim e ajudado a aprender que o fim último de cada sofrimento é um reencontro com o autêntico amor.
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