Ultracrepidário

Crónicas 13 janeiro 2022  •  Tempo de Leitura: 6
Esta foi eleita na Bélgica como a palavra do ano 2021 e significa a generalização da prática de emitir juízos sobre assuntos que se desconhecem. É o que na língua portuguesa referíamos como “treinador de bancada” que sabe o que fazer apesar de desconhecer os meandros daquilo que se está a passar no jogo. E na excelente síntese de Eduardo Madureira para o Sete Margens, recorda-se como no mundo das redes sociais, dar a palavra a quem não percebe muito sobre o que fala, elevou a sua opinião ao nível daquilo que os seus “amigos” consideram verdadeiro, aumentando o vírus da desinformação. O que fazer destes ultracrepidários? Penso no filósofo e teólogo jesuíta Bernard Lonergan.


Intelecção é o acto de compreender alguma coisa. Lonergan distinguiu quatro passos num acto intelectivo:
  1. estar atento (experiência)
  2. ser inteligente (compreender)
  3. ser crítico (juízo)
  4. decidir o que fazer (escolha)
 
Muitos são bons a observar e a fazer experiências por ser intrínseco à natureza humana; alguns têm consciência da necessidade de compreender as nossas experiências; a maior parte gosta de criticar e produzir juízos sobre tudo e mais alguma coisa; mas muito poucos tomam decisões tendo por base os quatro passos.


Lonergan dizia que os que passam da experiência para o juízo, sem passar pelo passo da compreensão são arrogantes intelectuais. Por muito que custe aos ultracrepidários, infelizmente, encaixam-se nesta categoria. E tanto as redes sociais, como a possibilidade de comentarmos tudo e mais alguma coisa nos jornais digitais ou internet em geral, estimulam o ultracrepidário que existe dentro de nós. Esta situação deve-se à gradual eliminação da fricção que existia quando alguém gostaria de emitir a sua opinião. Era necessário escrever uma carta, ou falar com alguém antes de opinar, ou seja, existiam momentos de pausa entre a experiência e o juízo que apelavam para a necessidade de compreender as experiências que fazemos.


Todos somos susceptíveis de nos tornarmos ultracrepidários porque vivendo num mundo onde temos uma mar de informação à nossa disposição, naturalmente sentimos que estar informado é o mesmo do que compreender aquilo que sabemos. Muitas vezes as nossas opiniões dão a imagem aos outros de estarmos aprisionados por detrás de grades, desesperados para ser libertados quando não existem paredes nos lados. 

O passo da compreensão daquilo que se passa à nossa volta exige um desacelerar para dar tempo para pensar nas coisas, evitando acreditar na primeira opinião que lemos e que está dentro da bolha daquilo em que estamos de acordo. Lembro-me que quando ouvi nas notícias televisivas referirem que João Paulo II havia aceitado as relações pré-matrimoniais em pessoas deficientes. Fui ler o que ele escreveu e percebi que não tendo conhecimento da sua teologia do corpo, uma pessoa poderia produzir esse juízo errado das suas palavras. Isso significa que evitamos ser ultracrepidários se lêssemos mais e melhor.
As pessoas queixam-se de não ter tempo para ler, mas se usassem todo o tempo (literalmente) que gastam a ler textos na internet em livros, ficariam admiradas com a quantidade de livros que seriam capazes de ler ao fim de um mês (4 ou 5 diz-me a intuição). Porquê livros? Porque os bons editores são sensíveis à compreensão que os autores têm daquilo que escrevem nos livros que editam. Logo, ao ler um livro fazemos uma viagem pela percurso de compreensão que o autor viveu, vivendo-a também. Mas o último aspecto que evita a arrogância intelectual do ultracrepidarianismo é o contraponto.


O contraponto é a parte mais difícil para qualquer pessoa, mas uma ajuda fundamental para evitar ser ultracrepidário. Ler ou ouvir quem tem ideias diferentes, e muitas vezes opostas às nossas, exige uma capacidade de escuta atenta e sincera, sem filtros. Todos conseguimos fazê-lo, mas exige treino e desapego do próprio pensamento para aprender a acolher o pensamento do outro. Porém, mesmo as pessoas que gostam de explorar os contrapontos, se não tiverem paciência ou treino em determinadas áreas do saber, correm sempre o risco de fazer interpretações erradas das diversas posições em jogo, caindo de novo (e sem querer) no ultracrepidarianismo.


A melhor resposta para evitar cair nesta tentação é — «não sei.» No não-saber está a génese da curiosidade em saber aprender para compreender como na ultra-aprendizagem, um conceito introduzido por Scott Young. Esta estratégia agressiva e auto-orientada para a aprendizagem significa que em vez de esperar pelo néctar de compreensão proveniente dos outros, assumimos nós o controlo do barco do conhecimento, dirigindo os nossos esforços e tempo para o que tem valor. Disso depende o desenvolvimento da capacidade de aprender através do trabalho empregue para compreender algo sobre qualquer assunto. Nesse sentido, diminuímos o ultracrepidário em nós para dar lugar ao ultrapreendedor.


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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