«Não é bom que o homem esteja só»

Crónicas 5 outubro 2021  •  Tempo de Leitura: 6

As leituras do 27º Domingo do Tempo Comum são de uma riqueza extraordinária! Se é verdade que, quase sempre, encaminhamos o relato do Génesis para o amor matrimonial - isto acontece porque associamos o texto evangélico em que Jesus é posto à prova pelos fariseus ao falar sobre o divórcio. Mas, na verdade, elas vão muito mais além… 

 

Porque se trata do Amor; porque é um tema abordado nas minhas aulas de EMRC com os jovens e adolescentes; porque a minha formação é em Teologia ou, e fundamentalmente, porque se trata da felicidade com que Deus nos ama e quer que nos amemos uns aos outros, permitam-me a partilha desta pequena reflexão.

 

De facto, fomos criados com amor e por amor.

 

O texto de Génesis 2, 18-24 mais do que abordar o amor matrimonial ou a igualdade entre homem e mulher, refere-se à necessidade da vida em comunidade. Refere-se à luta contra a solidão! Hoje, talvez mais do que nunca, vive-se na ilusão de acreditar que a felicidade é uma herança, um caminho, uma solução individual.

 

O Papa Francisco durante uma catequese proferida numa audiência em fevereiro de 2020, disse isto mesmo: «A solidão e a infelicidade surgem da necessidade de ser alguém. (…) Você tem que ser alguma coisa na vida, ser alguém ... É necessário ter um nome... É aí que surge a solidão e a infelicidade. (…) Se tenho que ser 'alguém', tenho que competir com os outros e vivo na preocupação obsessiva com o meu ego».

 

Para evidenciar o carater relacional entre homem e mulher, já em abril de 2015, o Sumo Pontífice afirmou: «A imagem da costela não exprime em absoluto inferioridade ou subordinação, mas, pelo contrário, que o homem e a mulher são da mesma substância e são complementares, têm esta reciprocidade». O homem sentia-se sozinho e triste. Faltava a reciprocidade.

 

As imagens que texto sagrado nos fazem vislumbrar são lindíssimas. Deus parece observar aquele que criou. E o que é que vê? Uma pessoa sozinha. Ele é livre e passeia-se pelo jardim, tem a companhia dos animais, mas está sozinho. Tem domínio sobre a criação, dá o nome aos animais, mas não encontra ninguém semelhante a si mesmo e está sozinho… E isto "Não é bom!" Falta a comunhão, falta a plenitude. Nas palavras de Francisco, "Assim era o homem, faltou-lhe algo para chegar à sua plenitude, faltou-lhe reciprocidade".

 

A questão da reciprocidade, da comunhão, da relação é hoje mais urgente do que nunca.

 

 “Se por um lado é verdade que o homem do século XXI se pode sentir mais livre, certamente se encontra mais sozinho hoje, dobrado sob o peso de uma carga invisível, mas muito pesada. Existe o ego - a conquista extraordinária da modernidade - cheio da sua suposta onipotência. Ele sente-se o Único ".

 

São palavras de Vincenzo Paglia, atual Presidente do Pontifício Conselho para a Família. Para ele, aquela passagem da Bíblia que está escrita no início da história humana, não por acaso, e que tem guiado a história ao longos dos séculos, é paradoxalmente desafiada pela afirmação de outro princípio: é bom para cada um estar por conta própria.

 

É como uma luta sem fronteiras entre estes dois princípios antagónicos, uma luta que põe em risco a própria coexistência do homem no planeta. É a ilusão de acreditar que a felicidade é uma herança individual, e que só depois se liga aos outros. 

 

É urgente voltar àquela primeira página da Bíblia. Cito Vicenzo Paglia: «Poderíamos imaginar esse retorno ligando-nos ao pensamento do próprio Deus após a criação de Adão. Então, pensemos na cena extraordinária pintada por Michelangelo na Capela Sistina. Deus viu esta sua criatura que era tão perfeita, que com aquele dedo indicador tocou a mão sem vida de Adão, que, por assim dizer, ficou animado com plenitude. Mas Deus olhando-o nos olhos viu uma pitada de tristeza e pensou melhor. E Deus criou a outra, Eva, e Adão despertando e vendo a outra ficou cheio de felicidade. Esta cena deve ser retomada e revivida neste nosso mundo».

 

Vivemos tempos de tamanha solidão… Estes textos bíblicos falam, acima de tudo, de relação, de acolhimento do outro, de comunhão. O matrimónio não é um fim em si mesmo, mas uma forma de viver a relação amorosa que está na origem do ser humano. Não se trata de pôr o outro ao meu serviço, às ordens do meu ego. Mas sim, de juntos caminharmos nesse amor fundante que é Deus. 

 

A rejeição do outro é síndrome de quem se sente sozinho, de quem se sente único. E toda a relação humana sofre com esta escolha. Não apenas a relação matrimonial, mas também a relação de amizade, de trabalho; o acolhimento do diferente, do estrangeiro, do refugiado…

 

Estamos cada vez mais conectados através das redes sociais, mas mais desligados da vida real. Temos centenas de amigos digitais, mas vivemos fechados nos nossos egos. Estamos mais próximos à distancia de um teclado, mas mais distantes para dar um abraço.

 

Perceber a dinâmica amorosa descrita na Criação do Homem e da Mulher, é lutar contra a solidão das sociedades atuais.

 

Bom feriado.

Licenciado em Teologia. Professor de EMRC. Adora fazer Voluntariado.

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