Uno

Crónicas 25 fevereiro 2021  •  Tempo de Leitura: 6

O deserto é estimulante, excitante e exigente para o escritor americano Edward Abbey. Ele usa três palavras em Latim para expressar a experiência que faz do deserto — claritas, integritas, veritas — clareza, integridade, verdade. Três sentimentos, três palavras, que me fazem pensar na Trindade. Mas como pode ser isso se o Pai, o Filho e o Espírito Santo são Um? Trino ou Uno? Uno e Trino? A matemática é um modo de pensar humano importante e palpável para muitas pessoas. E quando o cristão procura acolher em si a realidade do mistério trinitário, sente sempre esta aparente contradição entre um Deus que é Uno e Trindade. Não há contradição, mas somente um erro no tipo de operação matemática usada.

Se contemplares o ícone da Trindade de Rublev, contamos sempre um Pai mais um Filho mais um Espírito Santo, todos Deus, logo Três-Deus ou, mais correctamente, Trindade. Mas são um só Deus e três pessoas. O problema aqui está na visão literal do ícone que nos impulsiona a somar, quando essa não é a interpretação mais correcta para a dinâmica da vida trinitária que aprendemos de Jesus. Cada pessoa da Trindade não é “mais uma”, mas o Pai nada é sem o Filho e o Espírito Santo, como o Filho nada é sem o Pai e o Espírito Santo, ou o Espírito Santo nada é sem o Pai e o Filho. Cada pessoa não é somente por si mesma, mas existe “por” cada outra pessoa. Assim, como diria o bispo italiano Tonino Bello — «não falo de “um mais um mais um”: porque assim fazem três. Falo de “um por um por um”: e assim fazem sempre um.» As operações matemáticas corretas se quisermos usá-las como metáforas trinitárias são a multiplicação e a divisão, e o resultado é sempre um, ou uno.

A palavra uno significa “um”, mas também o que é “singular” e “indiviso”. A Trindade é indivisível, mas aqui está um dos paradoxos. Sendo indivisível, e pensando no “um por um por um”, já repararam que 1/1/1 = 1? Logo, a razão meta-matemática da indivisibilidade está na unidade que resulta dessa indivisibilidade. Porém, o significado de uno expressa-se também na extensão de nós mesmos quando somos dom para os outros.

Um professor de matemática explicou-me as dimensões como jamais esqueci. Um ponto tem dimensão 0, mas se “pegar” nesse ponto e “esticar” por um certo comprimento, obtenho uma linha que tem dimensão 1. Depois, se “pegar” nessa linha e “esticar” obtenho um plano que tem dimensão 2. Por fim, se “pegar” nesse plano e “esticar” obtenho um volume que tem dimensão 3. Curioso como o ser humano não concebe, visualmente, o que pode significar “pegar” no volume e “esticar” por sermos seres a 3 dimensões. Esticar é multiplicar. Mas, se fizer 1×1×1 = 1! Logo, também a multiplicação que expressa a extensão de nós próprios em dom para os outros meta-matematicamente nos leva ao uno que encontramos em Deus.
Parece que estamos a excluir a adição e a subtração de uma visão meta-matemática do uno da Trindade, mas isso leva-me a pensar de novo no paradoxo. Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, assenta um dos pontos da espiritualidade da unidade em Jesus Abandonado. Ele é a imagem do paradoxo, pois, representa tudo aquilo que é negativo neste mundo que, por amor e total abandono, se transforma em positivo. Ele é a pupila do olhar de Deus sobre o mundo e a janela pela qual o mundo pode contemplar o paradoxo em Deus. Por isso, Jesus Abandonado “é” e “não-é” ao mesmo tempo. N’Ele, o positivo e o negativo são um só, são uno. Como o sinal matemático ±.

O ± costuma associar-se à incerteza, e isso desperta em nós algum receio e temor. Mas a incerteza não está relacionada, também, com a surpresa? Olhar o ± é contemplar como o negativo pode sublinhar o positivo. No sinal ± entrevemos a inseparável relação entre o abandono do Pai e a ressurreição para experimentarmos uma visão mais completa de Deus. Uma visão una.

Uma vez no cinema ouvi uma piada contada num momento de boa disposição entre dois jovens universitários — «Estavam dois grãos de areia num deserto. De repente, um vira-se para o outro e diz. “Mmm… tenho a leve sensação de estarmos a ser perseguidos.» — E tinha razão, não? Talvez por milhões de milhões de outros grãos de areia que habitam o deserto. Mas, por mais que sejam os grãos de areia, quando os contemplamos vemos apenas um só deserto. Uma paisagem una. Talvez este periodo de reflexão interior seja uma oportunidade para (re)descobrir a presença do Uno dentro de nós e entre nós.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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