Último

Crónicas 31 dezembro 2020  •  Tempo de Leitura: 6
Este é o último dia do ano mais estranho e inesperado da nossa vida. Este é o dia em que mais se justifica fazermos um exame de consciência em relação às nossas escolhas. Mas, pelo seu carácter atípico, muitos poderão pensar que foi um ano em que não tivemos muita escolha possível. Desde o confinamento ao distanciamento físico e social, ao longo do ano, as escolhas parecem ter, gradualmente, diminuído e não estamos melhores agora do que estávamos em março. Mas talvez haja um outro ponto de vista.

Eventualmente, as escolhas não faltaram. Mas talvez o nosso leque dessas escolhas estivesse reduzido às que nos impediam de desenvolver uma vida interior em profundidade. Por isso, neste último dia do ano de 2020, talvez valha a pena sublinhar as escolhas que abriram o nosso horizonte de significado.

A vida interior é incompatível com o efémero, as distracções, a azáfama, o ruído, o desperdício de tempo, entre tantas outras coisas. Por isso, quando a pandemia nos obrigou a ficar em isolamento profilático, ou confinados por precaução, abriram-se inúmeras oportunidades para fechar os olhos que vêem com a luz exterior, e abrir o olhar interior à procura da luz do encontro com os nossos pensamentos. Mas houve uma resistência natural a estes momentos. De facto, seria a última coisa que estaríamos à espera quando 2020 começou, mas não são as coisas últimas as que nos levam a sondar o que é, ou não, profundo em nós?

Quando se iniciou o confinamento, lembro-me da reacção ter sido a que habitualmente acontece numa sociedade de vive do/para o entretenimento. Da janela se cantava, falava-se uns com os outros, sendo uma novidade ter de estar em casa sem poder sair. Mas restritos no espaço e mantendo a mente fechada ao encontro com os nossos pensamentos através de actividades mais introspectivas como pintar, escrever, ler, ou aprender uma nova capacidade, depressa a onda passou, vindo a depressão e o sufoco. Estar confinado já não nos divertia mais.

As escolhas mais comuns que alimentam uma vida interior são a leitura, a escrita, a pintura, o exercício, mas de todas estas, a que aumenta a tomada de consciência é a escrita. Mas escrever sobre quê?

Gratidão.

É, para mim, a palavra última que nos pode ajudar a processar as nossas emoções e a disposição interior. Gratidão por estarmos ainda vivos e podermos sonhar com um 2021 melhor. Desenvolver com o Novo Ano uma prática regular de escrever ao final de cada dia três coisas pelas quais estamos gratos. Estar gratos pela realização daqueles propósitos que foram possíveis de se realizar (penso, por exemplo, no casamento de uma colega adiado, mas realizado). E estar grato pelos cientistas terem encontrado uma vacina, e termos presenciado uma evolução científica, em tempo recorde, pelo aumento de uma partilha de conhecimentos científicos sem precendentes na história.

Por outro lado, houve quem começasse um diário e apesar da resistência inicial, todos os dias de confinamento, era para aquelas páginas que se voltam de modo a re-encontrar a serenidade e a claridade que permitiria viver o momento presente. Há quem tivesse comparado o acto de escrever num diário como arrumar um armário cheio de roupa amontoada. Começa por tirar tudo para fora e olhar para o tem diante de si. Antes de arrumar começa a ponderar o que tem a mais e pode oferecer, e pouco a pouco vai arrumando. Quer isto dizer que não há um modo certo ou errado de escrever num diário. Não há a pressão dos pensamentos inspiradores. Há apenas aquilo que queremos deitar cá para fora, para encontrarmos um pouco de paz, liberdade e desafogo.

Houve ainda quem vivesse o último dia de um matrimónio de anos, por não ter aguentado o para sempre, juntos, durante o confinamento. Houve quem tivesse dado, em 2020, o seu último respiro. Houve, também, quem perdesse o sentido último da sua existência e desejasse chegar ao último dia da mesma. Mas quantos não deram um ultimatum à tristeza, desenvolvendo formas novas e criativas que estar com os outros em segurança.

Mais picnics no exterior, mostrar a nossa casa a outros por Zoom, retomar os cinemas Drive-In, caminhar pela natureza em pequenos grupos com as devidas distâncias de segurança, fazer listas de músicas e partilhar com os outros, tomar uma refeição juntos com ligação remota, e as minhas preferidas: escrever cartas à mão; voltar a divertir com jogos de tabuleiro; ou até um telefonema em vez de mensagem.

O último dia do ano 2020 pode ser vivido com a esperança de ter chegado o tempo de rever o nosso percurso, e aproveitar para deixar para trás as coisas vãs e confiar que o fim último da vida é a simples alegria de viver. O que esperar, então, em 2021? Mais vida.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
Acompanhe os escritos do autor subscreveendo a Newsletter  Escritos

 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail