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Crónicas 29 outubro 2020  •  Tempo de Leitura: 6
Como podes amar Deus «com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças» (Mc 12, 30), e depois amar o próximo como a ti mesmo (Mc 12, 31)? Será que posso amar o próximo com o mesmo amor com que procuro amar a Deus? Recentemente senti a necessidade de entender esta aparente omissão evangélica. Qual a ligação entre uma coisa e outra?

Amar é dar-se. E quando penso em amar a Deus não me parece haver outra medida senão a d’Ele, isto é, dar-se totalmente. 

Quem pensa quantitativamente sobre o amor, corre o risco de pensar que amar a Deus implica já não sobrar amor para amar os outros, quanto mais a nós próprios. 

Quem pensa qualitativamente sobre o amor, corre o risco de pensar que se o amor a Deus não tem a qualidade que desejamos, como poderei amar com qualidade o outro, ou até eu próprio?

Quem se dá, verdadeiramente, não pensa em quantidade ou qualidade, mas apenas no próximo gesto ou palavra de amor a dar. É bom pensar, mas amar traduz em actos concretos os nossos pensamentos e desejos. Mas permanece ainda a questão da ligação entre amar totalmente Deus e amar o outro como a nós mesmos.

Amar é uma qualidade humana que não depende da experiência espiritual. Contudo, quando vivida intensamente, creio abrir cada pessoa à dimensão espiritual de todo o ser humano. 

Recentemente vi um documentário sobre “encontros imediatos do quinto grau”. Sim, um documentário sobre extra-terrestres que, facilmente, as pessoas desconsideram, gozam e não ligam nenhuma. Mas notei algo de subtil e intrigante. O “quinto grau” corresponde a sermos nós a estabelecer o contacto com outras civilizações reconhecendo a esfera da consciência como um véu misterioso que permite uma ligação inter-dimensional. Esotérico, pensas, mas mantém a mente aberta.

Sabemos muito pouco sobre a consciência humana. E a experiência que fazemos de uma dimensão espiritual abre-nos a mente em relação a quão pouco sabemos sobre nós próprios. Ao ver o que grupos de pessoas faziam para realizar estes contactos de quinto grau, e diante da documentação fotográfica que intriga, o que mais me sobressaiu foi o amor que aquelas pessoas sentiam umas pelas outras. De algum modo, encontraram a importância de se amar, dando-se totalmente, para contactar através da esfera ainda pouco conhecida da consciência outros seres do universo.

Não era somente as mãos que os ligavam, mas os corações, as mentes entre si. Esotérico, mas belo e profundo. Pode haver ligação mais profunda do que a das consciências?

A minha questão inicial surgiu durante uma homilia. E a partir do momento em que pensei onde está Deus, gradualmente, comecei a vislumbrar uma ligação. 

Em muitas paróquias canta-se “Deus está aqui”, mas não consigo deixar de pensar que poderíamos cantar antes “Deus está em ti”. E se está em ti, está em mim porque sou um “tu” para ti. Então, não só Deus está entre nós (porque nos amamos, Mt 18, 20), mas está em nós. Assim, mais do que amar-te, amo Deus em ti. E tu, mais do que amar-me, amas Deus em mim. E o amor recíproco que torna, misteriosamente, real a presença de Deus entre nós, é um amor de Deus para Deus. 

Amar a Deus com todo o meu coração, toda a minha alma, todo o meu entendimento, e com todas as minhas forças significa amá-Lo em ti. Mas também significa amá-Lo em mim! Neste sentido, amar o próximo é amar Deus nele, e “como a mim mesmo” é amar Deus em mim. E, em Deus, e somente n’Ele, se ligam os dois mandamentos.

Podes pensar que pensei o óbvio. Talvez, mas se fosse óbvio não haveria tantos dissabores nas comunidades cristãs. E quantos sacerdotes não ouvi expressarem a sua tristeza pelos desentendimentos entre as pessoas da sua comunidade. 

Há muito caminho a percorrer para dar visibilidade à realidade e potencialidade transformativa do amor centrado em Deus. Quem sabe se amando assim, não criamos à nossa volta uma pequena, mas catastrófica onda de amor que nos liberta dos mares de irrelevância que nos afogam.

Será preciso criar interiormente o espaço em nós para dizer a Deus — “entre”. 

Será preciso renovar o olhar entre os opostos para acolher mais o que nos liga uns aos outros, do que aquilo que nos divide. 

Será preciso estar atento aos espaços abertos entre os espaços fechados para mostrar como ainda existe espaço para amar.

Ou nada será preciso se entre mim e ti, entre Deus e Deus, aprendermos a reconhecer a tensão criativa do amor recíproco.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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