Pretexto

Crónicas 5 março 2020  •  Tempo de Leitura: 3

Antigamente sentíamos um misto entre o conforto e o desconforto natural ao passear pela rua de cada vez que nos cruzássemos com uma pessoa. Ter de confrontar o olhar do outro que desconheço é encetar num caminho de relacionalidade natural que nos é próprio. Mas, com o alvor da era digital encontrámos o Pretexto perfeito para deixar de sentir a incerteza do encontro com o outro. Salvos pelo ecrã.

 

Andamos, literalmente, cabisbaixos porque o manancial de conteúdos que nos são oferecidos ao preço da chuva salva-nos do confronto gerado pelos olhares das pessoas à nossa volta. Mantém-nos salvos na concha do “eu” que não quer ser perturbado pela “ferida” aberta no relacionamento ocasional com a pessoa que nos é estranha.

 

O contacto com a pessoa estranha abre uma ferida porque estamos sempre numa posição vulnerável nos primeiros encontros com as pessoas que desconhecemos. É humano, mas resolvemos esse problema com o Pretexto, não foi?

 

A nossa vida era real, mas com a emergência das novas tecnologias que permitem um maior contacto entre nós, deu-nos, também, uma faceta da vida, mas digital. Quer isso dizer que parte do nosso tempo de vida acontece via 1’s e 0’s que magicamente se convertem em conteúdos estimulantes no nosso cérebro, capturando a nossa atenção, olhar, pensamento, estar. Só me pergunto se é este o Pretexto que nos fará realmente felizes...

 

Quem anda pela rua, e troca o olhar em seu redor pelo Pretexto, anestesia-se do ambiente exterior, para se aprisionar no ambiente interior gerido pelos outros que nos controlam através das doses de dopamina libertadas no nosso cérebro e que nos dão um sentido de realização. Quem cede ao Pretexto sente-se bem. Por que razão haveria de fazer de outro modo?

 

Charles Baudelaire no seu O Pintor da Vida Moderna afirmava a curiosidade como o ponto de partida do génio. Curiosidade, sobretudo, pelo efeito que a vida de uma multidão de pessoas pode ter sobre nós. O gozo que a visão dessa multidão que passeia pelas ruas traz é a de que o pensamento de uma pessoa se identificava com os pensamentos de todos os que se moviam à sua volta. Havia uma energia relacional do contacto com as pessoas. Mas deixámos de olhar à nossa volta e cedemos ao Pretexto.

 

Quando deixamos de questionar o que nos isola do mundo significa que vivemos uma dormência da qual importa despertar se quisermos, realmente, viver a única vida que temos.

 

O caminho quaresmal é um convite a nos desinstalarmos e olharmos para dentro sem distracções, através da vida que se desenrola à nossa volta. Um gesto simples e difícil para muitas pessoas é guardar o Pretexto no bolso ou bolsa porque longe da vista, longe do coração. E assim, libertando esse coração de carne, despertar para os olhares desconhecidos à nossa volta e a riqueza que a vida real revela, por exemplo, através de uma boa caminhada pelas ruas no meio da multidão.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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