Os rostos anónimos de Deus

Lavar o dia 1 agosto 2025  •  Tempo de Leitura: 4

“… porque todos deitaram do que lhes sobrava, mas ela, da sua penúria, deitou tudo possuía, todo o seu sustento

(Mc 12, 44).

 

Começa hoje para muitos o tempo do descanso e sabe tão bem poder libertarmo-nos dos caminhos da rotina, da escravidão do despertador e da prisão do tempo sempre com hora marcada. Envergonho-me de o dizer, mas são mais que muitas as vezes que não guardo tempo para subir ao monte para orar em solidão (cf. Mt 14, 23), para falar-te em silêncio. Tantas outras começo, já deitada com o peso dos cansaços do dia, mas adormeço antes de te conseguir ouvir. Por isso, cada vez gosto mais destas nossas conversas semanais, durante as quais partilho contigo o que tenho trazido no coração.

Confrontada com imagens devastadoras dos incêndios desta última semana e, sobretudo, com rostos que retratam a exaustão que não carece de uma só palavra, o meu coração bate com arritmias de impotência. Tantos bombeiros, voluntários ou não, que não descansam neste mês em que o nosso país parece estar ‘fechado até setembro’, para que outros possam descansar, para que outros não percam os frutos do trabalho de uma vida e para impedir que alguém perca o dom mais precioso que nos deste: a vida. Lutam contra fogos descontrolados, tantas vezes ateados por ganância ou maldade, e com recursos ridiculamente limitados porque parece haver sempre meios para o supérfluo, mas nunca o suficiente para o necessário. Nesta rotina anual dantesca, só mesmo as populações locais se preocupam em alimentar e dar abrigo a estes homens e mulheres que dão tudo, como a viúva que com duas moedas deu todo o seu sustento (cf. Mc 12, 42-44).

Sei que há muitos outros heróis anónimos que por estes dias também têm dado tudo, pondo-se em situações de perigo para ajudar os mais fragilizados, como os idosos, enfermos, crianças e até animais, tentando poupá-los das consequências do egoísmo e da desumanidade do Homem. Simplesmente, a farda vermelha surge na época estival como símbolo deste esforço incansável. Nela estão estampados os rostos das pedras vivas que diariamente ajudam a construir a tua Igreja, mesmo que não o saibam.

Nunca deixa de me surpreender esta capacidade de tornar o pior no melhor de nós nestes momentos de maior angústia e dor. É entusiasmante ver que onde abunda o pecado, superabunda a graça (cf. Rom 5, 20) porque esta capacidade não vem de nós, mas de ti. É o teu Espírito que se move em nós e nos comove, que nos agita e impele, que nos enche de ti.

Nos momentos mais espinhosos da vida, nessa comunhão vemos a concretização da tua presença, da tua fidelidade e do teu amor no nosso ‘agora’. Perante tão grande e maravilhoso milagre, renova-se a esperança do nosso ‘amanhã’. Desconhecidos que aprendem a ver-se com compaixão; heróis que abrem caminhos de fé e caridade. Todos estes homens e mulheres bem-aventurados, com fome de coragem e de forças para continuar e com sede de justiça e de paz estão exaustos, Senhor. Oferece-lhes a leveza do teu jugo para que possam, enfim, descansar em ti.

Raquel Dias

Cronista "Lavar o Dia"

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e apaixonada pela escrita. Voluntária na paróquia de São Julião da Barra. Ovelha perdida que reencontrou o caminho. Hoje, de coração cheio e grato, procura transmitir a alegria do Evangelho a todos os que cruzam o seu caminho. \"Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?\" (cf. 8. Evangelii Gaudium)

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