Viver a liberdade de Deus
“É mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha
do que um rico entrar no Reino dos céus”
(Mt 19, 24).
Nestes últimos dias tens-me convidado a refletir sobre a liberdade. Tu e o teu provocador sentido de humor. Ouço frequentemente aquela frase cliché redutora e egoísta ‘a minha liberdade termina onde começa a tua’. Vivemos numa sociedade assoberbada de egos onde é comum entrarem em conflito uns com os outros, preocupados apenas com quem é o maior (cf. Mc 9, 34). Nas ruas, à mesa, em recreios de escolas, entre outros, andam tantos cabisbaixos por estarem mais interessados nos ecrãs onde mergulham do que nas pessoas à sua volta. A fantasia, as vidas perfeitas nas redes sociais, os avatares nos jogos e até os ‘desafios’ do TikTok, por vezes mortíferos, tornaram-se mais reais do que as suas realidades, por vezes, desinteressantes e rotineiras que passam a ser apenas uma névoa impalpável.
Posso não compreender tudo sobre a liberdade, mas sei que não é isto. Somos chamados a viver a tua liberdade, a que elevou a nossa condição humana para que pudesse tocar o divino. Sendo Deus, fizeste-te homem e o foste na perfeição. Um homem generoso, que foi a lugares improváveis, que partilhou o pão com os impensáveis e que amou os justos e injustos, os doutores e os pecadores, sendo fiel à vontade do Pai até àquele lugar de escândalo e de loucura onde morreste por nós.
Gostaria de pensar que, confrontada com a mesma encruzilhada, seria capaz de dar a vida por alguém. Talvez a escolha seja mais fácil quando são os nossos que estão em perigo, mas menos evidente se fosse um desconhecido. E talvez não porque já muitos entregaram suas vidas ao longo dos séculos por ti.
Sei que tenho ainda muitas amarras que me impedem a ser livre ao teu jeito porque há mágoas muito profundas cujas feridas teimam em não cicatrizar e que voltam a abrir-se quando o pensamento se desvia por lá. Não menos apertadas são as correntes que pus a mim mesma carregando as culpas das ações dos outros e da paralisia das minhas perante determinadas situações. As que não consegui prever e as que não soube compreender e acolher nos momentos em que aconteceram.
Curiosa é a contradição entre o teu olhar sobre as nossas fragilidades e o nosso olhar orgulhoso e carregado de juízos. Olho ao espelho e vejo apenas as minhas falhas enquanto tu vês a minha inteireza amando-me exatamente como sou. Gostava tanto de ver-me através do teu olhar e sei que grande parte das nossas frustrações e desilusões brotam da nossa incapacidade de nos aceitarmos como somos, aprisionando a nossa liberdade.
A tua liberdade convida-nos a viver uma vida de serviço sem ser servil, a amar o pecador mesmo que detestemos o seu pecado, a rejeitar a justiça do mundo quando for contrária à tua e tudo viver com a tua humildade e mansidão, mesmo quando nos perseguem por testemunharmos com a nossa vida tudo que és para nós.
Ouço com alguma tristeza cristãos a dizer ‘Deus tem mais que fazer do que se preocupar com os meus problemas’. Dizer isto é ainda não te conhecer bem porque prometeste estar sempre connosco. Não existem problemas mais ou menos importantes porque conheces tudo o que somos e quando algo nos entristece ou aflige, mesmo que por vezes não nos apercebemos, tu estás sempre presente.
Não há nada que com a tua graça não consigamos suportar. Bem disseste que para seguir-te era necessário aceitar a nossa cruz pois nela está toda a nossa vida, os dons que nos deste e as nossas fragilidades. Ao tomá-la aceitamos as pedras no caminho na certeza que estás em cada passo. Seguir-te é saber que vais à nossa frente para iluminar e guiar-nos nesse caminho que nos conduz ao Pai. Se, no entanto, dele nos desviar-nos ou se cairmos à sua beira, vens ao nosso encontro para nos levantar e pela mão nos levares de volta.
Sim, carregar a nossa cruz é difícil e muitas vezes nos parece demasiado pesada, mas também tu carregaste a tua até à morte. Como então não ver a sua beleza? Dá-me, Senhor, a coragem de desprender-me de tudo que me escraviza e a graça de tomar a minha cruz com verdadeira liberdade, a que me conduz a ver nos outros a missão que nos confias, mesmo nos momentos de dor e cansaço, por nela estás tu.