Feliz o resto que salvaste
“Ainda que o teu povo, ó Israel, fosse tão numeroso como a areia do mar, só um resto dele voltará” (Is 10, 22-23).
Hoje dei por mim a pensar na beleza do resto. Atualmente é um vocábulo com uma certa conotação depreciativa, mas que, na verdade, é portador de tão grande esperança. No quotidiano falamos, por exemplo, em restos de comida, como se fosse comida de segunda categoria. Contudo, vejo nos restos que guardamos nos nossos frigoríficos oportunidades de tornar novo o que já saboreámos com apenas alguns retoques. Curiosamente, no Natal, a refeição tradicional da Consoada em muitas casas portuguesas é o ‘bacalhau com todos’ que me faz lembrar da universalidade da tua Igreja e dasalvação que nos ofereceste na cruz.
Na tua infinita sabedoria mostraste que os ‘restos’ são os primeiros a encontrar-te pelo caminho. A fragilidade e vulnerabilidade dos que são tratados pela sociedade como impuros e indignos, tal como os pobres, enfermos epecadores, faz deste resto excluído aqueles a quem deste a primazia do teu olhar. Foi a estes vieste escutar, saciar, curar e libertar com o teu toque de misericórdia e compaixão. Foi a eles que disseste, como à pecadora que te lavou os pés com as suas lágrimas de arrependimento: “A tua fé te salvou.” (Lc 7, 50) porque foram, na verdade os pescadores, doentes, pecadores e até estrangeiros os primeiros a acreditar que eras o cumprimento das promessas de Deus.
És o Bom Pastor, aquele que conhece cada um de nós pelo nome (cf. Jo 10, 14), aquele que proclama que há “mais alegria no céu por um só pecador que se converte do que por 99 justos que não necessitam de conversão’ (Lc 15, 7), aquele que se enche de compaixão pelo filho que “estava morto e reviveu; estava perdido e foi encontrado” (Lc 15, 32). Corresao seu encontro, lançando-te ao seu pescoço e cobrindo-o de beijos (cf. Lc 15, 20). Vens sempre, como o Bom Samaritano, ao encontro daquele que, deixado meio morto na estrada eignorado pelos seus, é socorrido pelo mais improvável, um estrangeiro samaritano, povo odiado pelos judeus (cf. Lc 15, 30-31).
Felizes somos porque somos o resto que acreditou, ser ter visto, no testemunho daqueles que, como Tomé, puderam ver-te (cf. Jo 20, 29), como Estêvão, Pedro, André, Tiago, Filipe, Bartolomeu e tantos outros que, desde então, deram as suas vidas por ti e como Paulo, que após encontrar-te a caminho de Damasco, passou de perseguidor a evangelizador escolhendo os gentios, os que não pertenciam ao povo de Israel, o resto do mundo.
Graças te dou, Senhor, por todos os que vieram antes de mim e trouxeram a tua palavra aos confins da terra”. Graças te dou ainda por teres vindo ao meu encontro, quando estava perdida e por me teres reconduzido, no teu regaço, ao caminho que me convidas a percorrer, sem nunca desistires de mim, acolhendo-me com todas as minhas fragilidades e infidelidades e levantando-me sempre que caio e que quero desistir.
Obrigada por seres essa surpresa que a muitos choca porque os teus gestos nem sempre são os expectáveis. Os teus gestos falam uma linguagem que a maioria tantas vezes acomodada e adormecida desaprende a usar, a que se conjuga com verbos como ‘ver’, ‘compadecer-se’, ‘aproximar-se’, ‘carregar’, ‘hospedar’, ‘alimentar’ ‘cuidar’ ‘curar’ e ‘gastar-se’. Essalinguagem com entranhas de misericórdia, de entrega, de serviço, de fidelidade e de amor que, com a tua vida, nos vieste ensinar (cf. Lc 10, 29-37). “Dei-vos exemplo para que, assim como Eu fiz, vós façais também” (Jo 13, 15).