Hoje o dia dói

Lavar o dia 9 maio 2025  •  Tempo de Leitura: 5

Hoje o dia amanheceu triste e com ele o meu coração. Já o teu deixou de bater há um ano e, nesse dia, partiste inesperadamente ao encontro do que nos espera, terminada a nossa viagem neste mundo.

 

O ‘nós’ que éramos ficou suspenso como o intervalo de um dos concertos, que víamos juntos, que não recomeçou. Ficou tanto por dizer e fazer. Tantas alegrias e tristezas partilhadas, tantas discussões acesas sobre um tema qualquer, tantas afetuosas palmadinhas na cara e tantos aniversários sem ouvir: “hoje são 9s fora…”, que ficam apenas na memória.

 

Tal como a chuva que lá fora cai, também as lágrimas teimam em cair e, por mais que as tente esconder para que o aluno à minha frente possa tranquilamente concluir o seu teste, mas o seu olhar revela a preocupação de quem percebe o tempo cinzento que, hoje, há em mim. Nem preto porque sei que onde estás não existe ausência de cor, mas as cores do arco-íris da aliança firmada com a humanidade, na qual reina o amor, a fidelidade e a paz que agora conheces. Nem branco porque, na paleta da vida, para além das coloridas boas recordações existe também a indefinida cor da saudade, sentimento intrínseca e inefavelmente português, a doce tristeza de quem recorda com carinho o que não será mais.

 

Quando partiste no ano passado houve pessoas que com ternura acolheram as marés cheias das nossas emoções como faróis que iluminam a escuridão para que possamos atracar em segurança no porto. Pessoas que ajudaram a suportar o pesado jugo de pesar onde se misturam a incredulidade, tristeza e incompreensão e que ainda hoje lembro com a mais profunda gratidão.

 

Que noite tão estranha foi a da tua partida. Ver-te ali deitado, imóvel e exposto como se fosses uma atração de paragem obrigatória num roteiro turístico qualquer. Olhava para ti incapaz de te ver. Sabendo que eras tu ali estendido no centro da sala, vendo não acreditei, ao contrário de S. Tomé. Uma noite repleta de desconhecidos, recordações, risos, choro, impotência e dor. No entanto, foi também uma noite de reaproximação e de fortalecimento de laços, na família da qual és o elo.

 

Não menos bizarra foi a manhã seguinte, com mais desconhecidos e com o coração entorpecido pelas poucas horas de sono e pela amálgama de pensamentos confusos que tão depressa entravam e saíam da minha cabeça. Nessa manhã houve um abraço que me levantou. O abraço um padre amigo que veio celebrar a missa e encomendar a tua alma à bondade e misericórdia do Senhor.

 

A viagem da igreja ao cemitério de Oeiras foi mais longa do que alguma vez imaginei possível e apenas a companhia de duas das minhas sobrinhas foi capaz encurtar o caminho. Uma viagem que me fez pensar no percurso de numa pessoa condenada minutos antes de estar frente a frente com o seu pelotão de fuzilamento. O que se passará na cabeça de uma pessoa que sabe o dia e a hora previstos da sua morte? Ou do doente terminal a quem se dá uma estimativa de dias ou meses de esperança de vida? Admito que ao pensar nisto tudo percebi que a sabedoria popular bem tem razão quando diz que “a ignorância é uma bênção”.

 

Chegados, enfim, ao lugar do repouso final do teu corpo, não me saía da cabeça a loucura de pôr pessoas em gavetas como quem guarda a roupa lavada e dobrada. Curiosos e inexplicáveis são estes pensamentos que nos escudam de uma realidade que ainda não somos capazes de suportar e a que damos o nome de luto. Palavra que me faz pensar que é, de facto, uma luta interior com vários “rounds” à procura de uma paz, que inicialmente parece impossível de encontrar. Estática ali fiquei sem conseguir desviar o olhar da tua gaveta e quando a fechavam, até o ar me faltou porque lá dentro não conseguirias respirar. Naquele que foi o último aDeus ficou um eterno até já, mas hoje o dia dói.

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Raquel Dias

Cronista Rezar a vida

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e apaixonada pela escrita. Voluntária na paróquia de São Julião da Barra. Ovelha perdida que reencontrou o caminho. Hoje, de coração cheio e grato, procura transmitir a alegria do Evangelho a todos os que cruzam o seu caminho. \"Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?\" (cf. 8. Evangelii Gaudium)

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