Todos Acolhidos

Crónicas 1 fevereiro 2024  •  Tempo de Leitura: 5

Dostoiévski escreveu no seu livro "Os Irmãos Karamazov" que — «Se Deus não existe, tudo é permitido.» — o que por oposição seria “Se Deus existe, tudo é…” o quê? O primeiro pensamento que me passou pela mente foi acrescentar a palavra “nem” antes de “tudo é…” e manter o “permitido”. Talvez tenha sido esta a intenção de Dostoiévski, mas tratar-se-ia de um via alternativa pela negativa que me parece limitada. Em vez dessa via, a expressão que me ocorreu que corresponderia a uma formulação mais positiva seria «Se Deus existe, todos são acolhidos.» Todos. Mas, tudo?



No Evangelho de S. Mateus quando Jesus conta a parábola do Grande Banquete, a um dado momento Ele diz — «Ide, pois, às saídas dos caminhos e convidai para as bodas todos quantos encontrardes. Os servos, saindo pelos caminhos, reuniram todos aqueles que encontraram, maus e bons, e a sala do banquete encheu-se de convidados.» (Mt 22, 9-10) — Ou seja, aparentemente não impõe qualquer condição ao convite, até que encontra alguém sem o traje nupcial e expulsa-o. Se o traje não se refere à bondade ou maldade de uma pessoa, o que significa? Sendo o traje uma coisa, quer isto dizer que Deus acolhe todos, mas não tudo?



Existem várias interpretações para o que possa representar o traje nupcial. Por exemplo, o traje poderia representar aqueles que se vestem como se fossem Deus, confiando mais em si do que na Sua graça. Seria o traje da auto-suficiência, em vez do traje da inter-dependência. Uma outra interpretação seria o traje como veste que oculta a vida interior. Isto é, aqueles que não se deixam transformar interiormente por Deus vestem o traje da ocultação, em vez do traje da transparência. Por fim, a interpretação que mais pessoas talvez pense seria o traje como veste daqueles que consideram viver uma fé genuína (e cega), em vez de viverem verdadeiramente o que professam vestindo o traje de genuíno na fé. Estaremos cientes do traje que vestimos?



O “tudo” inclui as coisas e as pessoas. Mas se algo-ou-alguém desorienta algo-ou-alguém do caminho do amor, impede esse algo-ou-alguém de ser acolhido. Nesse caso, Deus até pode existir, mas o desorientado no amor perde a capacidade de reconhecer a possibilidade de amar. O caminho do amor subjacente ao acolhimento torna-nos inter-dependentestransparentes, e genuínos na fé, estimulando em nós e nos outros, os gestos amáveis de quem quer bem do outro, independentemente das escolhas que faz. 



Quando vemos aquilo que antes parecia não ter sentido como, por exemplo, a benção conjunta de pessoas homossexuais, a afirmação pública e nas comunidades de fé de pessoas que se identificam com as escolhas LGBTQ, etc., passa a ideia de que “tudo é permitido” porque isso é a consequência de acolhermos “todos, todos, todos” como afirmou o Papa Francisco diversas vezes. Por isso, muitas pessoas sentem que estamos a viver uma ameaça à experiência e ensino da expressão católica da vida em Deus. Isso leva alguns a quererem afirmar os valores como filtros que decidem quem pode e não pode pisar o terreno sagrado daqueles que vivem a fé, identificado como a Igreja. Porém, com isso esquecem que o terreno mais sagrado é o outro, independentemente de “tudo” aquilo que se permite.



Todos somos terreno sagrado, imperfeito, limitado, onde Deus quer construir um caminho de amor pela história. Se Deus existe, todos são acolhidos. E acolher o outro, não significa acolher “tudo” o que o outro escolheu, mas amá-lo por si mesmo, independentemente de “tudo” o que se permite a si mesmo. Quem não acredita que o amor incondicional move os maiores obstáculos interiores, não acredita verdadeiramente em Deus. Viver o acolhimento a todos é permitir que Deus seja tudo em todos.

 


Para acompanhar o que escrevo pode subscrever a Newsletter Escritos em

 https://bit.ly/NewsletterEscritos_MiguelPanao - "Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo" (BertrandWookFNAC)

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
Acompanhe os escritos do autor subscreveendo a Newsletter  Escritos

 

Subscrever Newsletter

Receba os artigos no seu e-mail