Curiosamente parecidas

Crónicas 14 setembro 2023  •  Tempo de Leitura: 6

Quando pensamos naqueles que estudam o universo, imaginamos as observações que fazem ao telescópio, a inteligência que têm para expressar realidades físicas com a linguagem matemática e ficamos estupefactos com a visão que nos oferecem do mundo. A não ser que sejamos também cosmólogos, é difícil negar a sua visão por ser científica e todos confiam na ciência. Fazem bem. E quanto à teologia, confiam da mesma maneira? Talvez não. Depende.

A teologia depende muito das convicções de quem a desenvolve. Um cristão desenvolve de uma maneira, um judeu de outra e um muçulmano de outra maneira ainda. Isto é, mediante a experiência religiosa, assim o teólogo desenvolve e oferece uma visão do mundo com o aroma divino. Mesmo não sendo teólogos, a atitude das pessoas relativamente à visão do mundo que a teologia oferece é diferente da atitude relativamente aos cosmólogos. Desconfiam. Quanto mais não seja (e independentemente de acreditarem ou não em Deus) sabem que Deus é a Realidade-que-tudo-determina. Por isso, só conseguem chegar ao conhecimento de Deus de maneira indirecta. Dito de outra forma, nada há que seja maior do que Deus que nos permita conhecê-Lo. E, como tudo parece depender a interpretação do teólogo, ou da confiança na veracidade das escrituras, muitos podem ser os argumentos para desconfiar. Porém, depois de ter lido um provocante artigo de opinião do astrofísico Adam Frank e do físico teórico Marcelo Gleiser, cosmologia e teologia estão curiosamente parecidas.

No final de 2021, num projecto conjunto entre a NASA, a ESA (Agência Espacial Europeia) e a CSA (Agência Espacial Canadiana), conseguimos colocar no espaço o Telescópio Espacial James Webb (JWST) que nos permite observar o universo como nunca antes o fizemos. O que o JWST capta é a luz enviada há milhares de milhões de anos pelas estrelas mais distantes e, por isso, mais próximas no início do nosso universo. Olhar para as estrelas é olhar para o passado longínquo.
O que as imagens do JWST mostraram, e que espantou os cosmólogos, foi a existência de galáxias totalmente formadas muito antes do que seria suposto de acordo com modelo padrão (Standard Model) da cosmologia. A atitude dos cientistas perante novos dados que desafiam o modelo costuma ser a procura de falhas no modo como os dados foram obtidos. Se os dados se confirmam, uma segunda possibilidade seria ajustar o modelo, mas o que Frank e Gleiser argumentam é que talvez tenha chegado o momento de repensar em profundidade o modelo e recomeçar de raiz. Voltar a uma quadro vazio e repensar os traços mais básicos que caracterizam o nosso universo. Algo que geraria uma verdadeira revolução conceptual da visão do mundo que a cosmologia oferece. Porém, há um problema. Os novos dados indicam que as leis da natureza que criámos podem não estar bem formuladas. Logo, se precisamos de novas leis por causa destes dados, qual o grau de confiança que temos em todas as outras leis que formulamos? Corresponderão à verdade ou será melhor esperar pela confirmação de que não irão mudar? O que nos garante isso? Quem se bate com unhas e dentes pela veracidades das leis da natureza descritas pela ciência padece de algum fideísmo científico? E se não podemos confiar totalmente na compreensão que temos do mundo, o que é, afinal, a verdade? O relativismo ou cepticismo absolutos são respostas derrotadas. E todas estas questões revelam como cosmologia e teologia são, realmente, curiosamente parecidas.

Frank e Gleiser dizem que — «A cosmologia não é como as outras ciências. Não é como estudar ratos num labirinto ou observar produtos químicos a ferver num frasco num laboratório. O universo é tudo o que existe; só há um e não podemos observá-lo de fora. Não se pode colocá-lo numa caixa sobre uma mesa e realizar experiências controladas nele.» Neste sentido, não é o cosmos para os cosmólogos semelhante a Deus para os teólogos? Se não podemos fazer experiências com o cosmos que é visível, como poderíamos esperar fazer experiências com Deus que está para lá de tudo o que é visível? Se é possível à cosmologia estudar algo indirectamente, por que razão haveríamos de negar essa possibilidade à teologia? Se aceitamos as especulações sobre o cosmos que provêm da cosmologia, podemos também aceitar as especulações sobre Deus que provêm da teologia.


Conseguem sentir como cosmologia e teologia são curiosamente parecidas? Talvez estejam até curiosamente ligadas. E o que as liga? A fé como confiança na possibilidade de vislumbrar a verdade sobre as realidades mais profundas.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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