Cinco vezes

Crónicas 23 março 2023  •  Tempo de Leitura: 6

Sabiam que no passado dia 20 de março foi o Dia Internacional da Felicidade? Imagina um povo que pensa 5 vezes por dia na morte. Achas que as pessoas se sentem felizes? Curiosamente, no Butão, um pequeno reino entre a China e a Índia, essa prática é considerada como uma ideia-chave dos elevados índices de felicidade do país. Então, por que razão, o Butão não aparece sequer no Relatório Mundial da Felicidade em 2023, 2022, 2021...?



Em todos os relatórios aparece um agradecimento ao Butão pelo impulso no estudo global da Felicidade Nacional Bruta (FNB, Gross National Happiness - GNH) sendo o país e reino o inventor deste índice e pioneiro no seu uso como motor da vida nacional, em vez do Produto Nacional Bruto baseado em valores económicos. Porém, dado o pequeno tamanho e população deste reino, apesar da sua participação conceptual no relatório, a ênfase que dá à FNB, aparentemente, é o que justifica a sua ausência. Ou seja, o estilo de vida nacional não é quantificável como se faz com os restantes países. Fiquei intrigado.



A abordagem à Felicidade Nacional Bruta é holística e foca-se em nove domínios: padrões de vida, saúde, educação, ambiente, comunidade, uso do tempo, bem-estar psicológico, governo e cultura. Pensar sobre a morte enquadrar-se-ia na espiritualidade que está dentro do domínio do bem-estar psicológico, mas esse representa 5.6% do FNB. Por que razão os habitantes do Butão consideram que pensar na morte cinco vezes por dia torna-se numa ponte para uma vida mais feliz?



A morte é uma realidade humana incontornável. Todos passaremos por essa e dessa não passaremos. Muitas pessoas receia a morte e para elas pensar nisso é uma fonte de preocupação e ansiedade, sobretudo quando a idade avança ou quando lhes é diagnosticada uma doença grave ou mesmo terminal. Mas existe um lado positivo de pensar na morte. Ficamos mais cientes da realidade que vivemos, mais presentes e tendemos a focar a mente mais naquilo que realmente tem valor.


A vida é frágil, limitada, o tempo é finito e se não encontrarmos a paz no facto inescapável de que todos iremos morrer, podemos, dificilmente, viver verdadeiramente. A autora Linda Leaming escreveu um livro sobre aquilo que aprendeu no Butão e diz que — «Por termos medo, carregamos a nossa vida com coisas que, realmente, não precisamos. Assumimos projectos, ideias, pensamentos, esperanças e preocupações, e carregamos os nossos dias com tarefas para nos distrairmos da morte.» — E se estamos tão preocupados em morrer, arriscamo-nos a não viver plenamente tudo quanto poderíamos.


Um estudo de C. Nathan DeWall e Roy Baumeister (co-autor do livro "A Força de Vontade") observou que pensar na nossa morte suscita emoções positivas quando comparadas com as emoções mais negativas que experimentamos se pensarmos antes numa possível dor de dentes. Dizem os autores que — «a morte é um facto psicologicamente ameaçador, mas quando as pessoas a contemplam, aparentemente, o sistema automático começa à procura de pensamentos felizes.» — O que justificaria a associação da felicidade à pratica dos butaneses. Por outro lado, esta resposta emocional positiva ocorre espontaneamente e sem nos darmos muito conta disso.


A morte é a génese da evolução no universo. É preciso a morte de uma estrela para gerar carbono, o elemento base da vida em qualquer parte do universo. É preciso a morte de uma geração para dar lugar à geração seguinte. A morte faz parte da vida. Por isso, pensar cinco vezes por dia como forma de contemplar a nossa morte, na prática, é dedicar cinco vezes por dia a pensar na vida profunda e plena que a morte gera. E quando contemplamos a morte, os pensamentos positivos que daí surgem levam-nos a gozar as mais pequenas coisas, contribuindo de maneira simples para a nossa felicidade.



Cada vez que estamos diante de um grande dilema, ou problema, se pensarmos na morte, o mais provável será relativizarmos o problema e volta a paz. Os momentos que temos deixam de ser banais. E a impressão de nos sentirmos vazios por dentro em determinados períodos difíceis da nossa vida, diante da contemplação da possibilidade da nossa morte, percebemos quão precioso é o respiro que neste momento damos ao ler estas palavras. 


Linda Leaming diz ainda que — «Treinarmos a pensar sobre a morte pode dar-nos algum alívio de viver e um foco que nos fortalece e nos torna menos assustados. Se pensarmos suficientemente sobre a morte, todas as nossas reacções — o medo, temor, o terror, a ansiedade, as coisas acumuladas mental e fisicamente, e a repugnância — eventualmente dissolvem-se como o último fôlego de uma vela. E aí, tudo o que consegues fazer é rir.» Quando rezo o quinto dos mistérios dolorosos do terço dedicado à morte de Jesus na cruz, a frase que Chiara Lubich sugeriu aos que fazem parte do Movimento dos Focolares para meditar esta realidade foi — «Aceitar a nossa morte.» Neste caminho quaresmal, talvez pudéssemos contemplar mais na nossa morte para reconhecer o valor que tem cada momento da nossa vida, pequeno ou grande, e deixar que os pensamentos e sentimentos felizes fluam por nós.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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