Alienação Ambiental

Crónicas 11 agosto 2022  •  Tempo de Leitura: 6

Durante dez dias fiz um caminho em Castelgandolfo, mais do que uma vez, duas ou três, e só no penúltimo dia dei-me conta do seu nome ”Cammino della Fraternità” — Caminho da Fraternidade. Cruzava-me com muitas pessoas que faziam o seu exercício. Uma corriam, outras andavam de bicicleta e maior parte andava, como eu. Depois, começou a surgir um grupo estranho. Eram pessoas que olhavam para o seu ecrã de telemóvel e nem sempre tinham os auscultadores nos ouvidos. Por isso, de olhos fixos e com o som alto, caminhavam alienadas do ambiente à sua volta. Para verificar se assim era caminhei na mesma direcção de uma dessas pessoas para ver se notava na minha presença. Não notou e, meio assustada, desvia-se de repente de mim. Não foram uma, duas ou três pessoas que faziam isto, mas várias. O que se perde com esta alienação ambiental?

A informação ou entretenimento por vídeo que consumimos através dos nossos telemóveis, absorvem (quase) absolutamente a nossa atenção. Não importa o que se passa à sua volta e nos momentos em que a mente poderia perder-se um pouco no meio dos pensamentos que nos ocorrem ou vaguear sem esperar chegar a qualquer objectivo, este grupo de pessoas prefere abdicar disso. Porém, um grupo de investigadores publicou um estudo recente que mostrou como esses momentos — diria — de contemplação são recompensadores quando praticados.

O excesso de informação no século XXI, com a possibilidade aberta pela velocidade 4G ou 5G, facilita o consumo de entretenimento, a partilha das coisas mais banais nas redes sociais, a troca (quase) ininterrupta de mensagens, e cresce o risco de que a comunicação entre nós se torne cada vez mais superficial. Uma foto. Reacções. Outra foto. Mais reacções. Momentos felizes que desejamos partilhar, mas temo ajuizar que se tornou tão banal que ninguém sabe se os sorrisos se mantêm depois da foto ou não.

No estudo que citei, um grupo de 250 pessoas foi convidado a contemplar sem qualquer orientação ou pensar naquilo que quisesse. No fim da experiência partilharam com os investigadores como gostaram mais de estar com os seus pensamentos do que imaginavam no início. O ser humano é das poucas espécies capaz de ficar quieto a pensar e, aparentemente, fazemos cada vez menos uso desta capacidade. E, pergunto-me: o que recuperaríamos do génio humano se reduzíssemos a alienação ambiental e praticássemos mais este vaguear pelos pensamentos?
Diversos estudos mostram como perdermo-nos nos nossos pensamentos ajuda-nos a resolver alguns problemas, aumenta a nossa criatividade, estimula a imaginação e a auto-estima. Mas, aparentemente, a alienação ambiental atrai mais do que estarmos juntos com os nossos pensamentos, a contemplar o que existe do lado esquerdo ou direito do caminho que estamos a percorrer. 
Uma das razões das pessoas evitarem encontrar-se com o seu pensar consiste no medo que têm do efeito que os pensamentos negativos podem exercer sobre si. Receiam entrar numa espiral de tristeza tal, que não conseguem mais sair. Eu já experimentei isto. É como sentir que um certo tipo de pensamentos gera na mente um buraco negro, e nada do que nos dizem ou fazem para nos animar, consegue ajudar-nos a sair dessa espiral recessiva. E aquilo que poderia representar um pensamento sem importância, acaba por se tornar de uma importância desproporcionada e emocionalmente dolorosa. Porém, a minha experiência é a de que isso acentua-se quando estamos sozinhos entre quatro paredes e isolados dos ambientes humanos e naturais. Uma solução para lidar com o risco dos pensamentos negativos poderia ser a experiência de olhar com mais atenção para o que se passa à nossa volta. Mas que novidade pode conter os ambientes do costume?

Os ambientes a que estamos acostumados parecem não conter nada de novo. As rotinas que temos, os tempos mortos nos transportes públicos, quando esperamos numa fila para sermos atendidos, ou aguardamos por alguém, podem gerar tédio e o acto imediato de nos voltarmos para o ecrã começa a ser habitual. Mas, como li em tempos — «O tédio é o último privilégio do homem livre.» — e quando evitamos a alienação ambiental, praticando aquele “notar em coisas novas”, nasce algo em nós que pode revelar-se transformativo: a curiosidade contemplativa.

Há algum tempo que me tenho questionado sobre a razão de estarmos sistematicamente a viver os mesmos problemas apesar do avanço cultural relativo ao século passado. Por que razão crescem as ondas extremistas políticas? Ou guerras entre países (supostamente) civilizados? Não temos imaginação para mais? A curiosidade contemplativa orienta a nossa atenção para a vida que floresce à nossa volta. Contemplar e, com isso, desenvolver a nossa curiosidade, desperta-nos do sono profundo do entretenimento fácil, arranca a nossa mente do lodo da superficialidade e predispõe-nos à potencialidade relacional presente no ambiente cultural, social e natural do qual somos uma parte essencial. E quanto maior for a nossa curiosidade, maior será a nossa atenção ao outro, de tal forma que nos preparamos melhor para o simples encontro no meio de um caminho como o da Fraternidade e deliciarmo-nos com um recíproco — «buona sera.»

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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