Cinzas

Crónicas 3 março 2022  •  Tempo de Leitura: 6

«Tende cuidado em não praticar as vossas boas obras diante dos homens, para serdes vistos por eles. Aliás, não tereis nenhuma recompensa do vosso Pai que está nos Céus.» (Mt 6, 1) Ao escutar estas palavras de Jesus no Evangelho da Quarta-Feira de Cinzas foi imediato pensar como este “ser visto” hoje ganhou uma nova dimensão com as redes sociais e os influencers que fazem a sua vida à custa da imagem.


Assim, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas, nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens.» (Mt 6, 3) E aqui lembrei-me de todos os que nos murais das redes sociais ou grupos de WhatsApp dão os parabéns a alguém, mas publicamente, para toda a gente saber que o fizeram, ou no grupo onde estão outros. Já me questionei: por que o fazem para todo o grupo, em vez de o fazerem pessoalmente à pessoa?


«Quando rezardes, não sejais como os hipócritas, porque eles gostam de orar de pé, nas sinagogas e nas esquinas das ruas, para serem vistos pelos homens.» (Mt 6, 5) E aqui lembrei-me de todas as mãos a rezar que proliferam pelos grupos 🙏 certo? E pergunto-me se substituirá uma mensagem mais profunda e pessoal à pessoa a quem quero assegurar a minha oração.


Deus conhece-nos no íntimo e creio que este tempo quaresmal é o momento de reduzir a cinzas digitais alguns dos nossos hábitos virtuais, algo em linha com um dos apelos do papa Francisco na sua mensagem para esta Quaresma.



Diz o papa — «Não nos cansemos de combater a concupiscência, fragilidade esta que inclina para o egoísmo e todo o mal, encontrando no decurso dos séculos vias diferentes para fazer precipitar o homem no pecado (cf. Encíclica Fratelli tutti, 166). Uma destas vias é a dependência dos meios de comunicação digitais, que empobrece as relações humanas. A Quaresma é tempo propício para contrastar estas ciladas, cultivando ao contrário uma comunicação humana mais integral (cf. ibid., 43), feita de «encontros reais» (ibid., 50), face a face.» Mas como diz, também, D. António Marto na sua mensagem, o itinerário quaresmal é um paradoxo «das cinzas ... ao fogo. E não o contrário!» Algo que nos faz lembrar o que estamos a viver com a guerra na Ucrânia, mas existem ainda outras cinzas digitais ligadas ao olhar.



Na homilia da Quarta-Feira de Cinzas do Frei Fabrizzio na missa em Santo António dos Olivais (Coimbra) referia como os olhos podem mostrar um cansaço espiritual. Pensei nos olhos de muitos voltados para os ecrãs, por vezes, durante a própria missa, que geram antes da fadiga espiritual, também, a fadiga física. Na última década, o tempo que passamos a olhar para um ecrã aumentou muito, de tal modo que as pessoas começam a sofrer de irritação nos olhos e dores de cabeça. É verdade que podemos aplicar algumas estratégias para diminuir esse efeito, mas o problema de base mantém-se: grudados tempo a mais ao ecrã. Mas tudo isso pode mudar se assumirmos a sérios os propósitos quaresmais.


Os propósitos ligam-se muitas vezes a renúncias em valor monetário que revertem no fim a favor daqueles, ou das obras, que a Igreja percebe que mais precisam, e isso é bom. Mas quando termina a quaresma, quantos são os que mantêm a renúncia a determinados hábitos que fizeram parte desses propósitos? Durante toda a quaresma, quem terá coragem de apagar as aplicações das redes sociais do seu telemóvel (não as contas) e, na Páscoa da ressurreição, avaliar se as deve re-instalar ou não?



Ao longo do tempo em que escrevo corro o risco de me tornar incómodo com a desvalorização que faço, sistematicamente, das redes sociais quando iniciativas, como o iMissio, parecem conseguir chegar a tantas pessoas através dessas. Se tivermos que ficar grudados ao ecrã, será assim tão mau se for em páginas Facebook ou instagram como as do iMissio?



O pó das cinzas é carbono, o elemento base para a existência física de vida. Reduzir o excesso de informação e a comunicação superficial a cinzas digitais significa dar espaço, atenção, partilha e proximidade ao mundo real à nossa volta. Nessa realidade física cheia de dores e amores escondo-se a semente da força transformativa de uma Presença especial. Não há lugar mais profundo onde podemos encontrar Deus que não seja na interioridade do outro que tiver, seja em que momento for, fisicamente diante de mim. A quaresma é um retorno a Deus. Aquele que vivifica as cinzas que emergem a partir do supérfluo que queimarmos neste tempo.

 


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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