Belo

Crónicas 28 outubro 2021  •  Tempo de Leitura: 6
«Que belo!» — dizemos sempre que algo faz sentido para nós e expressa a harmonia da vida, a melodia dos eventos ou a alegria dos sucessos. Mas lembro-me de ler Alfred North Whitehead dizer que a beleza está na harmonia dos contrastes. Talvez esteja, ou talvez o “belo” seja uma realidade mais profunda ainda que nos fala da nossa origem e fim.


Há dias cruzei-me com o filósofo e poeta Ralph Waldo Emerson. Eu encontrava-me na fase encarnada da vida e ele na fase encadernada. Lia no seu “Espírito da Natureza”que
 
«a condição humana constitui a solução (...) às perguntas que ela própria formula. Antes de a apreender como verdade, realiza-a, como vida.»
Identifico-me nestas palavras porque o pensamento que provém da vida tem na sua raiz a proximidade com a condição humana que perfaz a realidade com que nos confrontamos todos os dias. Uma condição que não sobrevive somente com as ideias, mas precisa de ideais. Uma condição que não é alheia à condição dos outros que se cruzam no seu caminho. Uma condição que cruza o limiar do belo no encontro que fazemos uns com os outros, mas, também, com a natureza.


Haverá alguém que olhe para o céu cheio de estrelas e fique indiferente? Qual a razão das estrelas nos impulsionarem a um acto imponderado de contemplação? Diz Emerson que
 
«As estrelas inspiram reverência, pois, embora presentes, não deixam de ser inacessíveis.»
Não lhes posso tocar senão com o meu olhar. O belo desse momento de contemplação está na inacessibilidade, mas isso requer algo especial no interior de nós mesmos. Pois,
 
«todos os objectos da Natureza criam uma impressão semelhante quanto a mente se abre perante a sua influência.»
Pelo que, também a casca de uma árvore que posso tocar, ou a água de um ribeiro na montanha que posso beber, ou o ar fresco matinal que posso respirar, tornam-se, de certo modo, inacessíveis se a minha mente se mantiver aberta ao acto contemplativo que esses momentos geram em mim, e em ti, em nós.


Toda a crise climática que estamos a viver é uma crise do homem do passado que julgou possuir o que não era seu, mas gerou os hábitos na nossa geração para mantermos na história o seu sentido de posse. Creio que foi uma posse por ignorância (nada douta por sinal). E um modo de recuperar a compreensão de que nada na natureza é nosso, nem nos foi dado, mas é parte de nós e nós parte dessa, implica encontrar o belo de uma paisagem. Uma experiência que Emerson vivia no seu quotidiano —
 
«A encantadora paisagem que ainda hoje, de manhã, contemplei, era, com absoluta certeza, dumas vinte ou trinta herdades. Millar é o dono daquele terreno; Locke, daqueloutro e Manning, do bosque, mais para além. No entanto, nenhum deles possui a paisagem.»
Pois, a paisagem que integra tudo aquilo que pensamos ser nosso é um “algo mais” distinto das partes que a constituem. É uma unidade feita na diversidade e que só um coração belo, como o do poeta, pode integrar com a sua rima, ou um pintor com a sua tela. Pessoas que vivem da arte de contemplar o belo.

Contemplar uma paisagem envolve os nossos sentidos. Habitualmente, usamos mais os sentidos exteriores, mas não podemos esquecer os interiores. Quando os sentidos interiores se harmonizam com os exteriores através do amadurecimento pessoal, acabamos por conservar o espírito das crianças que não cessam de se deslumbrar com as mesmas coisas, ininterruptamente. A abertura da mente gerada pelo inacessível convida-nos a rever o nosso relacionamento com a natureza através dos sentidos interiores e exteriores. E a relação do espírito das crianças desperto em nós «com o céu e com a terra converte-se em parte do seu alimento quotidiano.» Isto é, sacia a nossa sede do que é belo.


A incapacidade de mudar os nossos ritmos de vida para que se tornem mais sustentáveis aos sentidos interiores e exteriores, advém de um certo voltar o olhar para si próprio. O ego que se torna -ismo. Mas,
 
«De pé, sobre a terra desnuda, com a minha cabeça banhada num ar jovial e elevado no espaço infinito, esvai-se tudo o que sugere egoísmo. Converto-me num globo ocular transparente, não sou nada, vejo tudo; as correntes do Ser Universal circulam através do meu corpo; sou uma parte ou partícula de Deus.»
 
No dom-total-de-nós-mesmos, o Belo faz em nós o que não conseguimos fazer por nós próprios. Ser belo significa ser uma partícula de Deus. Não por mérito próprio, mas pelo que Ele pode fazer em nós, por nós e connosco.


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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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