Linguagem

Crónicas 23 setembro 2021  •  Tempo de Leitura: 7

Estaremos à deriva no barco cultural que se move pelo mar da história? Recentes episódios fizeram-me pensar que nos agarramos às rochas do passado e à linguagem do medo. E num recente comentário de um sacerdote americano às declarações do Papa Francisco sobre a uniões homossexuais, sente-se uma faceta da Igreja fechada às surpresas de sentido e significado que Deus nos quer revelar em cada tempo da história. E escorrem mais as palavras sobre o grave pecado que é viver em união homossexual do que enchemos o mundo da comunicação gerada pela experiência ímpar, bela e refrescante do amor entre um homem e uma mulher. A linguagem conta por ser motor de evolução cultural.

Estou cada vez mais convencido da existência de um mecanismo mais importante na evolução do que a selecção natural e a sobrevivência dos mais fortes. Alguém que sabe comunicar as suas ideias de um modo simples, claro e persuasivo, consegue mudar o curso da história. A comunicação é mais do que transferência de informação entre um emissor e um receptor. Comunicar é comunicar-se. E quem se comunica, transforma o ambiente em seu redor. Logo, o acto de comunicação é um dos mais claros actos de doação que conheço. E quando comunicamos ficamos com uma noção mais clara dos ambientes interior e exterior que nos permitem estar atentos ao próximo gesto a fazer para sobreviver. Por isso, quem melhor comunica, maior probabilidade tem de sobrevivência neste conturbado mundo sem fricção na informação que flui por todos os meios possíveis e imaginários.

Na origem da comunicação está uma vocação intrinsecamente humana à comunhão. Essa intuição é milenar, pois, já o autor do génesis percepciona como o ser humano é chamado à comunhão com Deus, com os outros e com a natureza. Mas uma comunhão realiza-se apenas quando participamos da/na vida uns dos outros através da partilha de experiências de vida, pensamentos, desejos, necessidades, tudo. E quando se realiza a comunhão, criam-se laços que fortalecem a vida em comunidade e a sobrevivência dos seus membros através dos gestos mais pequenos. Brian Hare e Vanessa Woods no seu livro ”Survival of the friendliest” (A Sobrevivência dos mais Amigáveis), refere como a partir de diversos estudos se observou como o simples gesto de uma criança a estender o braço e apontar o dedo, expressa a comunicação cooperativa como uma capacidade que temos de comunicar a nossa mente aos outros, como faz um bebé. Nesse sentido, comunicar o que está na nossa mente acaba por ser a porta para um novo mundo social e cultural onde herdamos o conhecimento das gerações. Não é assim que encontramos valor na Tradição do pensamento católico? O problema é que esse exige linguagem. E a linguagem evolui como os genes.

Antes, uma linguagem do medo para dar força às nossas ideias funcionava. Hoje, num mundo em que as pessoas são cada vez mais ousadas nas opções de vida que tomam, e gostam de mostrar um comportamento anti-convencional, se mantivermos a mesma linguagem do medo, impedimos a linguagem de evoluir. E mesmo que pretendamos esclarecer os corações com apelos ao pecado se mantivermos determinada situação, ainda que seja assim, sinceramente, cai em saco roto.
Não sei por que razão, mas a linguagem legalista que justifica uma contraposição, por exemplo, contra as uniões homossexuais, citando documentos da Congregação para a Doutrina da Fé faz um serviço pobre à missão sinodal da Igreja. O legalismo para justificar a vivência da fé esvazia-se de significado porque esvazia-se do amor com que os documentos foram escritos. Uma união homossexual pode ser considerada por uns como contra a razão, mas se usarmos esse argumento para condenar, a nossa linguagem desvia-se do amor que acolhe todos, independentemente das suas escolhas.
Quando escutamos a linguagem do Papa Francisco sobre a pergunta feita em relação à legalização das uniões homossexuais, o Papa diz que — «o matrimónio é o matrimónio. Isto não serve para condenar as pessoas que são assim [homossexuais], não, por favor, eles são os nossos irmãos e irmãs e temos de os acompanhar. Mas o matrimónio como sacramento é claro, é claro. Que existem leis que providenciam aos que se querem associar [em união homossexual], uma lei para terem um serviço de saúde (…) são coisas feitas (…), mas o matrimónio como sacramento é entre um homem e uma mulher. Algumas vezes o que disse foi confuso. Contudo, respeitem todos. O bom Senhor salvará todos - não digam isto em voz alta (risos) - mas o Senhor quer a todos salvar.» E eu não tenho a menor dúvida.

Na linguagem do Papa Francisco, alguns católicos sentem uma permissividade que vai contra o ensinamento da Igreja em relação às uniões homossexuais, mas a linguagem que o papa usa com palavras como acompanhar, respeito, é a linguagem do amor. E se prescindimos da linguagem do amor, prescindimos de Deus que é amor. Aliás, quem acredita que Deus é amor e quiser falar de Deus, pode falar outra linguagem que não seja a do amor?

Neste tempo em que reflectimos sobre o “caminhar juntos”, pedimos ao Espírito santo que continue a iluminar os nossos corações sobre o modo de ser da Igreja como sinodal. E um dos pilares da Igreja sinodal é a comunhão. Se não procurarmos amar, escutar a todos, e trabalhar mais a linguagem do amor, retiramos espaço à acção inesperada de Deus que a todos quer salvar.

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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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