Dádiva

Crónicas 3 junho 2021  •  Tempo de Leitura: 6
A vida é uma dádiva proveniente da morte de uma estrela, sem a qual não haveria carbono, um componente fundamental para a génese da vida. Os nossos corpos que permitem a propagação da vida no tempo e no espaço são uma dádiva do fenómeno evolutivo e da relacionalidade que constitui as primeiras comunidades humanas.

A forma do nosso corpo é uma dádiva dos nossos pais expressa por um código genético único e irrepetível. E, muito embora haja quem use a expressão — “temos um corpo” — e está correcta, penso ser uma expressão incompleta.

Pensamos que possuímos o nosso corpo, mas alguém é capaz de esclarecer o que fizemos por isso? O corpo que dizemos ter existe materialmente neste Universo, é fruto da Evolução na história da Terra e nada seria se não fossem os nossos pais. Logo, eles fizeram alguma coisa para que o nosso corpo existisse. É um dom dos nossos pais, independentemente da maior ou menor consciência que tinham disso. Mas esta é, ainda, uma ideia incompleta por levar-me a questionar sobre o sentido e significado de nos ter sido dado um corpo. 

Dado por quem? Pelo Universo? Pela Evolução? E atrevo-me a questionar se até a ideia anterior de terem sido os nossos pais. Dado por quem? Alguns devem já estar à espera de uma lógica qualquer da minha parte para chegar à ideia comum a todos os crentes de que temos um corpo porque nos foi dado por Deus. Mas, talvez, Deus nos tenha dado mais do que isso.

Com a Assunção de Maria ao Céu, celebrada a 15 de agosto, percebemos como corpo e alma são um só. O corpo que temos é espiritualizado e o espírito que temos é corporalizado. Por muito difícil que possa ser esta intuição: não posso ver o corpo sem ver o espírito, ou o espírito sem ver o corpo. 

O que Deus nos ensina com a Assunção de Maria é que não temos meramente um corpo. Somos um corpo.Mas Deus, aparentemente, não se fica por aqui. Hoje, celebramos o Seu corpo eucarístico. E todos os que comungam do Seu corpo, assimilados por Ele, tornam-se um só n’Ele.

E, por isso, todos nós que O comungamos, somos um só e n’Ele deixamos de ser nós próprios. Estranho. Mas, na prática, significa sermos Jesus, mesmo que não nos demos totalmente conta disso.

Olhar para alguém após o momento da comunhão do Corpo de Deus deveria despertar o nosso olhar para vermos Jesus nele. E, se comunguei, o outro deveria olhar para mim e ver Jesus. No Seu corpo eucarístico, todos os relacionamentos que estabelecemos uns com os outros são de Jesus para Jesus. É uma realidade tremenda que não nos deveria deixar indiferentes. Mas as caras das pessoas no final da missa não espelha a inesgotável fonte de sentido para a vida que a dádiva do Seu corpo encerra.

Uma vez ouvi uma história de alguém que passando pela porta de uma Igreja dizia que os cristãos não acreditavam realmente que Jesus estivesse presente no Pão Eucarístico. Pois, se acreditassem, não saíam da Igreja. É forte esta impressão, mas o que esta pessoa não se deu conta é que Jesus sai ao final da missa, presente em cada pessoa que O comungou. Logo, se na nossa cara não virem Jesus, talvez seja o momento de fazermos um sério exame de consciência.

Quando o sangue no nosso corpo deixar de fluir porque o coração deixou de bater, e o pensamento silenciar-se, o que fica? É posto em causa o facto de corpo e alma serem um só? Ou será que o nosso corpo, “cristificado” em vida, depois de adormecermos num sono profundo e eterno, poderá ser dádiva para a Terra e Eucaristia para o Cosmos? Será por esse motivo que somos um corpo em vez de o possuirmos? Que transformação quer Deus para o mundo através de cada ser-humano-Jesus consumido pela terra?

Quando o corpo for pó, nada restará senão os relacionamentos que criámos como dádiva de nós mesmos para quem nos estava próximo. Naqueles cujo rosto resplandecia a luz de Deus proveniente do nosso amor. Cada vez que penso na celebração do Corpo de Deus, creio ser uma celebração do amor mais puro e fino que podemos conceber e experimentar. Máximo significado na maior fragilidade. Partícula aparentemente circunscrita, mas como as aparências iludem… Deixarmo-nos transformar pelo Seu corpo faz de nós dádivas de Deus para o mundo se o fio condutor dos nossos gestos for o amor. 

Amor que revoluciona o Universo a partir da mais simples dádiva de vida (in)contida num pequeno e fino pedaço de pão. Que o Espírito Santo transforme o nosso olhar a partir da presença de Jesus em nós para experimentarmos uma felicidade que não tem ocaso.

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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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