Sono

Crónicas 4 março 2021  •  Tempo de Leitura: 6
Quando numa das tentações do deserto Jesus diz que nem só de pão vive o homem, mas de toda a Palavra que sai da boca de Deus, fico a pensar como essa Palavra que escutamos, diariamente, na Eucaristia possui um valor transformativo para todos os tempos. Mas isso implica que a Palavra que escutamos se torne vida em nós, caso contrário, permanece adormecida, num sono profundo. E isso é bom ou nem por isso?

Às vezes penso como Deus arriscou muito ao transmitir-nos a vida por palavras, uma vez que essas são memes culturais cujo significado pode mudar ao longo do tempo. Pensar nisso, de certo modo, não contradiz o que S. Pedro dizia a Jesus? — «A quem iremos nós, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna! (Jo 6, 68)». Não estará a eternidade das palavras de Jesus no acto de as traduzir em vida, isto é, criativamente pô-las em prática? Quando não o fazemos, adormecemos para a vida profunda e despertamos para a vida superficial.

A vida superficial acontece em função do contexto do momento. O que nos entreter mais, será o que nos dirá mais. Disfarçada por um dinamismo frenético, a vida superficial consegue preencher o nosso tempo, atenção e dar-nos uma sensação de realização. Vive de sensações do momento. Mas o ser humano não criou cultura à base das coisas superficiais senão depois do grande desenvolvimento da tecnologia do entretenimento. Nessa, a dor explorada virtualmente adormece as nossas dores de crescimento, impedindo que nos ajudem a amadurecer. Se o ser humano vivesse sem dor, não viveria de todo.

No relato da criação do homem e da mulher, a diversidade dos sexos emerge a partir de um sono profundo. Quando José toma conhecimento da gravidez de Maria, não sabe bem como reagir e lidar com o problema social que isso representava. Então, Deus inspira-o através de um sonho durante o seu sono. Por isso, talvez o sono profundo seja um modo paradoxal de despertar para a vida profunda. Libertos dos ruídos exteriores, damos espaço aos valores emergentes da vida interior que se manifesta nos sonhos. O sono é mais do que um restauro das nossas capacidades físicas e cognitivas. Talvez seja uma porta para um encontro especial com Deus.

Durante o sono funciona mais a nossa imaginação do que a nossa razão. Quer isto dizer que a imaginação é uma predisposição essencial para dialogar e entender o que Deus quer. Para além do sono profundo, existe, também, alguma profundidade naqueles momentos em que não sabemos bem se estamos acordados ou a dormir. É o que se designa por estado hipnagógico onde não sabemos se o que experimentámos foi ou não real. 

Investigadores da Universidade de Cambridge estudaram o estado hipnagógico e, de acordo com Valdas Noreika, a actividade cerebral durante esse estado não corresponde a impulsos complexos aleatórios, mas a uma actividade mais ordenada. Por isso, estes investigadores estão a estudar a hipótese de que a entrada no sono seja um momento em que o nosso cérebro desmantela os modelos e conceitos que usamos para interpretar o mundo, e leva-nos a experimentar momentos sem constrangimentos ou filtros mentais. Será por isso que Deus encontra o ambiente acolhedor para O escutarmos?

Experiências feitas pelos psicólogos Clemens e Jana Speth da Universidade de Dundee encontraram sinais neste estado hipnagógico do declínio do pensamento reflexivo através do qual avaliamos as nossas experiências da vida quotidiana. Mas, por outro lado, mediram um aumento dos pensamentos relativos à interacção física com os mundos imaginários. São momentos descritos por Charles Dickens como cenas visionárias que passam diante de nós e dentro de nós. Alucinações controladas que põem em causa as palavras escutadas durante o sono? Talvez não. 

Palavras escutadas em sono profundo poderão produzir em nós um efeito inesperadamente positivo. A imaginação que o sono desperta abre a possibilidade à impossibilidade. Turva a linha que separa a realidade crua da vida, da visão daquilo que o mundo poderá ser se nos abrirmos à Palavra que Deus nos dirige a cada momento. E quando despertamos do sono, não deixa de ser surpreendente o facto de no lembrarmos daquela ideia que pode dar vida à Palavra. Mas penso, por fim, que sono é, também, uma palavra italiana.

Quando Deus se refere a Si mesmo a Moisés, se falasse italiano, diria — Io Sono — Eu Sou. Sono = Sou. É uma curiosidade no mundo das línguas, mas quando escutamos a Voz de Deus, ou da nossa consciência, durante o sono, não há motivo para que não seja a verdade sobre nós próprios que vem à tona e que relembramos quando acordamos. A Palavra pronunciada em sono pode ser o impulso a despertar e a transformar em vida os nossos sonhos. Cuidemos bem do sono.

 
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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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