Imersão

Crónicas 14 janeiro 2021  •  Tempo de Leitura: 6
Baptizar poderia ser somente “nascer de novo” como filho de Deus, mas a raíz desta palavra é mergulhar, imergir. Quando a escutei no Domingo passado pensei no convite a tomar um banho de imersão nas coisas que dão real valor à nossa experiência de vida, sobretudo diante dos difíceis desafios que temos pela frente nos próximos tempos.

A imersão é um convite à profundidade. Muitas áreas da nossa vida pautam-se por alguma superficialidade. E quando as atitudes assentam na superficialidade, o resultado não nos faz crescer em sabedoria, mas em remorso diante das desilusões. Quando tomamos um banho de imersão em água quente, fazemos a experiência de um momento de pausa, uma paragem para deixar os pensamentos fluir e restaurar a nossa atenção às coisas importantes, aumentando o sentido de alerta para notar em coisas novas que nos enriqueçam interiormente.

Os próximos tempos não serão fáceis. Como na descida de uma montanha, baixar os braços para viver a alegria da proximidade teve um preço que alguns pagaram caro com a sua vida. Sabemos que a morte faz parte da vida, mas sabíamos, antecipadamente, do perigo que os ajuntamentos no Natal e Ano Novo poderiam representar para os mais velhos ou aqueles com uma saúde mais frágil. Arriscámos o duradoiro com o efémero. Entristece-me pelas famílias cuja alegria momentânea se transforma na perene tristeza pela partida de um ente querido. Valeu a pena arriscar? Talvez seja o momento de imergir para encontrar alguma paz.

Imersão no irmão. Tudo passa e é vaidade das vaidades. O que permanece são os relacionamentos construídos com todos os que estão à nossa volta, incluindo os encontros circunstanciais. Cada relacionamento traz algo de novo à nossa vida. Um novo respiro pela história que podemos construir juntos, passo a passo, muitas vezes no silêncio.

Imersão na fidelidade. Costuma-se dizer — aquele que é fiel nas coisas pequenas, é-o, também, nas grandes. A fidelidade é um passo de imersão em profundidade que podemos dar nas atitudes que temos com os outros, e connosco próprios. Fidelidade também à vontade de Deus que se manifesta naquilo que temos para fazer em cada momento presente.

Imersão na confiança. O abandono à fé na ciência (ou cientistas), abandono aos que nos acompanham pelas caminhadas da vida, às instituições que nos ajudam a distinguir facto de ficção e, sobretudo, um abandono à vontade de Deus que deseja sempre a nossa felicidade. Todos estamos, quer queiramos ou não, afectados pelos efeitos nocivos da desinformação. E a falta de confiança que sentimos ao dar determinados passos, ou fazer certas escolhas, advém do movimento cultural para desconfiar de tudo o que não esteja dentro da nossa bolha. A imersão na confiança implica, muitas vezes, entrar na zona de desconforto para nos aproximarmos da verdade e das coisas que são reais (em vez das virtuais).

Imersão na Luz. Uma onda electromagnética não se vê e movimenta-se, literalmente, no vazio. É assim que a radiação solar dá vida ao nosso planeta. O que sentimos e experimentamos são os efeitos que a luz produz na interacção que faz com algo. É preciso haver elementos que possam reflectir a luz para que nos demos conta da sua presença. Como os valores. Se não houver valores, a luz não pode reflectir a sabedoria que está para além do pouco que conhecemos e compreendemos. E se valorizamos o que não reflecte a luz? Não são vazios, porque a luz move-se no vazio, mas bloqueios à luz que criam na vida zonas de sombra. Como é importante pensar sempre naquilo a que damos valor.

Imersão no Amor. Esquece o sentimento que gera. Esquece a decisão que exige. Simplesmente, mergulha no amor através de uma atenção plena a tudo o que nos rodeia, dando-te totalmente como acto de amor. Os sentimentos despertarão. As decisões tomar-se-ão pela clareza gerada da confiança na Luz que provém do Amor. No amor tudo se liga e no Amor tudo se reconhece ligado a tudo. Só assim consigo entender um pouco daquilo que S. João queria dizer com “Deus é Amor.”

Mas a superficialidade é tão mais entretida do que a profundidade da imersão. Por isso, é enorme a tentação que suscita dentro de nós para nos mantermos à tona. Não se aprende a resistir à tentação da superficialidade de um momento para o outro. Requer tempo, paciência, recomeços, trabalhar a vontade e todos os convites anteriores de imersão que sugeri.

O resultado de uma imersão autêntica nas realidades visíveis e invisíveis do mundo é renascer. É como fazer uma anamnese (actualizar a memória) diária do nosso baptismo. E acolher a dificuldade como fonte de amadurecimento. O desafio do mergulho de nos abandonarmos em Deus, quer acreditemos n’Ele ou não.
 
 
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Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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