Intra-visionário

Crónicas 12 novembro 2020  •  Tempo de Leitura: 6
Estava a ler o livro “A Aldeia Global” de Marshall McLuhan escrito em 1988, quando me deparei com a frase — «no ano de 2020, perto de 8 biliões de pessoas (…) encherão o planeta.» — Curioso, fui ver qual a população mundial este ano… 7.8 biliões. “Uau!” — pensei, mas reparei que havia um asterístico no fim dessa frase e li a nota de rodapé — «As Nações Unidas estimam que a população mundial em Abril de 1987 seja de 5.5 biliões; e no ano de 2020 esse número deverá aumentar para, aproximadamente, 7.8 biliões.» — Na mouche. Literalmente fiquei de boca aberta. O que quer que esteja por detrás dos modelos, funciona, mas o que mais me interpelou foi a leitura que McLuhan e outros fizeram há anos daquilo que hoje se passa. São o que chamaria de intra-visionários.
 
Os intra-visionários são os que conseguem imaginar o mundo do futuro a partir do interior (intra) daquilo que vivem no seu presente. São pessoas sensíveis aos sinais dos tempos e atentas ao percurso da história humana. Contemplam as alterações culturais, e conseguem visionar o efeito que poderão produzir nas gerações futuras. Uns são cientistas, outros antropólogos, alguns filósofos ou teólogos, mas eu creio que a pessoa comum pode tornar-se um intra-visionário. E para quê?

Eu antes pensava que se mostrasse todos os factos a uma pessoa, apresentasse um raciocínio lógico, e fosse muito entusiasmado a fazê-lo, conseguiria que entendesse e acreditasse no meu ponto de vista, mudando o seu. Que ingénuo.

Ao longo dos anos apercebi-me de que o diálogo não se contrói com base na uniformização das nossas opiniões, mas no aprofundamento da nossa opinião com a opinião do outro. O fruto de um diálogo autêntico não implica passarmos a acreditar no mesmo, mas a acreditar na beleza do nosso relacionamento. A cabeça das pessoas muda mais com os relacionamentos, e depois os factos, do que pela apresentação dos factos à espera de criar bons relacionamentos. Os intra-visionários fazem uma coisa interessante: apresentam os relacionamentos a partir dos factos.

Em 1985, Neil Postman olhava para o modo como a televisão estava a alterar a cultura americana e escreveu um livro, cuja tradução do título seria ”Entreter a nós mesmos até morrer”. Começa por explicar que antes dos ecrãs serem a nossa fonte de entretenimento, as conversas eram o modo de viver a cultura. A oralidade é o que nos permitia viver momentos de boa disposição e de alguma profundidade. As histórias contadas pelos mais velhos, ou as que nós próprios inventávamos. Mas, por alguma razão, o ditado ”ver para crer” sempre falou mais alto do que o mais belo discurso ou história. 

Antes, na prática, falávamos como escrevíamos porque a palavra escrita era a que gerava cultura na pessoa. Agora, falamos como vemos e, segundo Postman, o nosso falar é cada vez mais idiota. De facto, não sei porque razão, e com tristeza, acabei de me lembrar de Donald Trump. Pois, já em 1985, Postman dizia,

«Conforme a cultura se move da oralidade para a escrita para a impressão para a televisão, as ideias do que é a verdade movem-se com essa. (...) A verdade, como o próprio tempo, é um produto da conversação que uma pessoa tem consigo mesma sobre, e através, das técnicas de comunicação que inventou.»

Nos debates que assisti durante o período pré-eleitoral americano, as frases de Trump pareciam tweets: curtas e sem conteúdo. Partilhei esta impressão com um amigo americano e ele confirmou-me. Não julgo Trump, pois, de que servem os tweets senão para nos entreter? O modo como falamos traduz muito o modo como pensamos. E os ecrãs focados no nosso entretenimento querem saber pouco do nosso pensamento. O mundo que vivemos é assustadoramente semelhante ao Admirável Mundo Novo de Aldous Huxley, outro intra-visionário. Diz Postman — «o que afligia as pessoas noAdmirável Mundo Novo não era que riam em vez de pensar, mas sim não saberem por que razão riem e por que razão deixaram de pensar.»
 
Talvez estejas a pensar que visionários são antes todos os que nos permitiram usufruir do conteúdo que entra pelos nossos olhos através dos ecrãs. Esses é que são os inovadores visionários que foram suficientemente loucos para quererem mudar o mundo. E mudaram. Mas sentes que o mundo está melhor?

Eu quero acreditar que sim. Sou um optimista como Teilhard de Chardin de que o futuro é melhor do que qualquer passado, mas sou realista como McLuhan de que «mais e mais pessoas entrarão no mercado das trocas de informação, perder as suas identidades privadas no processo, mas emergir com a capacidade de interagir com qualquer pessoa à face do planeta.»
 
O mundo não está cada vez mais pequeno, nós é que nos damos, cada vez mais, conta de que pertencemos à mesma família humana. Assim, está aberta a possibilidade de nos tornarmos intra-visionários na história do nosso próximo, oferecendo-lhe uma visão que parte do interior de uma vida plena e profunda, e que não depende do ecrã, mas do coração.

Aprende quando ensina na Universidade de Coimbra. Procurou aprender a saber aprender qualquer coisa quando fez o Doutoramento em Engenharia Mecânica no Instituto Superior Técnico. É membro do Movimento dos Focolares. Pai de 3 filhos, e curioso pelo cruzamento entre fé, ciência, tecnologia e sociedade. O último livro publicado é Tempo 3.0 - Uma visão revolucionária da experiência mais transformativa do mundo e em filosofia, co-editou Ética Relacional: um caminho de sabedoria da Editora da Universidade Católica.
 
 
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