A antropologia da Luz

Crónicas 26 setembro 2019  •  Tempo de Leitura: 9

Baptismo: primeiro sacramento da iniciação cristã, ou melhor dizendo, dinamismo que nos entranha na única Vida realmente digna desse nome. No cristianismo primitivo ninguém se assumia logo como cristão, mas na Via (no Caminho) de se converter num. Quem deseja assumir e viver esse processo, aspira a tornar-se «luz do mundo» (Mt 5,14), pois sem dúvida alguma a humanidade necessita de emergir da escuridão.

 

Não, não se trata de cairmos num discurso derrotista ou numa ideologia puritana. Gosto de pensar que tornar-se cristão é assumir o máximo potencial da nossa humanização. Ninguém nasce acabado. Ser pessoa exige um processo dinâmico que nos desafia como autores. Porém, muitos podem ser os obstáculos que nos conduzam inadvertidamente na contramão desse processo.

 

Sempre em busca de algum progresso, corremos o risco da manipulação. Umas vezes iludidos por falsas promessas, outras vagueando sem bússola, ignoramos por onde nos movemos nem para onde vamos. Arriscamos um passo à frente, para, muitas vezes, recuarmos dois atrás, ainda que movidos por ambições justas e legítimas. Afinal damo-nos conta que sucumbimos diante de estruturas e sistemas perversos e inumanos que não conseguimos superar pelas próprias forças.

 

Como humanidade, todos sofremos submetidos à mercê do mal. E o maior problema é não sabermos eliminar a sua raíz – tão antiga como a nossa espécie. Facilmente caímos na falácia de julgar, acusar, desesperadamente à busca de todos os bodes expiatórios que nos tranquilizem a consciência e nos convençam de que não partilhamos da mesma jangada frágil e errante. Por isso, a verdade que a Bíblia nos revela – sempre difícil, mas necessária de aceitar – é que todos andamos amarrados e por nós mesmos não somos capazes de soltar o nó. Só Deus tem esse poder.

 

Isolados diante do mal, encontramo-nos sempre impotentes. O seu dinamismo é de tal forma intrincado e fundido na nossa humanidade que muitas vezes emerge mascarado nas nossas melhores intenções, e por vezes, nas mais nobres causas. Por isso mesmo a Bíblia frequentemente associa o mal à metáfora das trevas, da cegueira e da mentira.

 

A escuridão distorce por completo a perceção da realidade, destruindo todo o sentido de perspetiva e racionalidade. Diante das trevas já não há distância nem proximidade, mas um vazio, um vácuo onde não é possível contemplar o rosto do outro nem o nosso. Achamo-nos, enfim, solitários e inquietos, entregues ao medo e ao instinto de auto preservação. Gera-se então a ilusão do abandono, da terrível solidão, do vazio existencial de ficarmos entregues a nós próprios, e consequentemente à ilusão da ameaça do outro, convertendo-o numa presença perturbadora, um fantasma que amplia o medo e a violência.

 

Penso, quem sabe, ser esse o maior trunfo do mal: retirar-nos a visão clara do que realmente é a vida e quem é o próximo. Só a luz poderá desfazer este terrível equívoco e converter quem outrora se assemelhava a uma sombra ameaçadora num próximo com quem nos identificamos, porque possui um rosto humano: «carne da minha carne e osso dos meus ossos» (Gen 2,23).

 

Essencialmente, o poder do mal radica na sua fraudulência, na capacidade de engendrar uma mentira dominante. No relato do Génesis o mal não é criação de Deus. É exterior, um intruso à obra criadora cuja única vocação seria transparecer a Bondade do Criador. Porém, como um réptil rastejante e escorregadio o mal serpenteia até ao ouvido, insinuando-se como um sussurro, uma mentira que se apodera do coração de Adão e Eva: «Deus sabe que no dia em que dele comerdes abrir-se-ão os vossos olhos, e sereis como Deus» (Gen 3,5).

 

Mas logo que provam do fruto proibido, passam a ver tudo distorcido:

 

«Então, abriram-se os olhos aos dois, reconhecendo que estavam nus, coseram folhas de figueiras umas às outras e colocaram-nas, como se fossem cinturas, à volta dos rins» (Gen 3,7)

 

A nudez (a verdade de mim e do outro) torna-se incómoda, inconveniente, forçando-os a cobrirem-se. O texto não nos fala de pudor: Adão e Eva já não suportam contemplarem-se realmente como são. Escolheram a cegueira, e por isso condenam-se a esconderem-se um do outro. E logo de seguida também se escondem de Deus:

 

«Ouviram [cegos, não podem contemplar o Criador. Evitam-n’O], então, a voz do Senhor Deus, que percorria o jardim pela brisa da tarde, e o homem e a sua mulher logo se esconderam do Senhor Deus, por entre o arvoredo do jardim» (Gen 3,8).

 

Ele já não é o Criador cheio de Bondade, mas uma presença ameaçadora de quem se têm de ocultar. Logo interrogados por Deus, Adão antagoniza Eva, acusando-a do delito. Eva, por sua vez tenta ilibar-se da sua responsabilidade acusando a serpente (Gen 3,12.13). Conclui-se a espiral da acusação que mata a harmonia do casal – Satanás na Bíblia é o acusador (Zc 3,1; Ap 12,10). Adão e Eva, ao contrário do que julgavam não se tornaram como Deus, mas cegos comportam-se como Satanás, o inimigo de Deus, aliado do mal – a partir daqui fica quebrada a confiança e a proximidade entre o casal e o Criador.

 

Mas é mais tarde que nos deparamos com a grande tragédia, resultado desta terrível cegueira: gerando descendência, transmitem aos filhos a mesma maleita. A cegueira sufoca a fraternidade e dá lugar à loucura e à ira: «Caim ficou muito irritado e andava de rosto abatido» (Gen 4,6) porque o irmão é agora um rival. Então Caim decide matar Abel (Gen 4,8). E é esta a pior consequência da grande mentira, as trevas que ainda hoje se abatem sobre uma humanidade dividida e fratricida. É este o pecado original. O pecado de Adão...

 

No outro lado do espectro, a luz na linguagem bíblica simboliza a presença salvadora de Deus, triunfante sobre o mal, a Verdade profunda da nossa existência, da sua origem e destino. No texto do Génesis a Luz é a primeira obra da Criação (Gen 1,2). Nada existe antes dela. Enquanto as trevas são a ilusão e a mentira que tolhem a compreensão, a luz é a Verdade: traz a claridade da percepção, revela a real dimensão e o devido lugar de todas as coisas. E a grande Verdade do Evangelho é Jesus, Luz da humanidade:

 

«O povo que andava nas trevas viu uma grande luz» (Is 9,2; Mt 4,16)

 

«Nele é que estava a Vida de tudo o que veio a existir. E a Vida era a Luz dos homens. A Luz brilhou nas trevas, mas as trevas não a receberam. Apareceu um homem, enviado por Deus, que se chamava João. Este vinha como testemunha, para dar testemunho da Luz e todos crerem por meio dele. Ele não era a Luz, mas vinha para dar testemunho da Luz. O Verbo era a Luz verdadeira, que, ao vir ao mundo, a todo o homem ilumina» (Jo 1,4-9)

 

O baptizado é o portador da túnica branca

Renasce como filha(o) da Luz.

A vela do Baptismo simboliza a Luz de Cristo,

Da Sua Verdade, da Sua presença Salvadora no mundo

O Cristão baptizado é o Filho da Luz, revestido do poder redentor de Cristo Ressuscitado

Farol que dissipa todas as trevas,

Destinado a Revelar a Verdade libertadora sobre a vocação humana para a fraternidade,

A Verdade da nossa origem como imagem e semelhança de Deus

A Verdade do nosso destino

A Assunção na Vida Divina

Em Comunhão com Deus, Família de Amor

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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