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Crónicas 28 janeiro 2021  •  Tempo de Leitura: 3

O que a Bíblia nos ensina sobre a vida? Simplisticamente respondemos “é dom de Deus”. Claro. Mas em que sentido e profundidade?

 

O livro do Génesis apresenta-nos uma imagem simbólica: o Criador inclinou-se sobre a terra lamacenta e agarrando num punhado soprou-lhe o seu hálito (Gn 2,7). Segundo esta imagem, tornamo-nos viventes porque fomos insuflados por um sopro vital. Ou seja, a vida torna-se humana e pessoal a partir de uma dilatação. Ou melhor dizendo, somos feitos de espaço!

 

O mesmo livro também nos dá outra imagem por oposição: a vida animal e vegetal foi criada “segundo a sua espécie”. Que quer isto dizer? Por exemplo, o cão, o cavalo ou a alface nascem já completos. A evolução e a natureza programou-os a comportarem-se de um modo muito limitado pela biologia. Não têm escolha. Não “há espaço” neles para decidirem o que querem ser porque a natureza já os determinou. Porém, enquanto pessoas, somos abertos à novidade, revelamo-nos como um mistério dinâmico e inacabado porque a nossa liberdade supera de longe os condicionalismos naturais. Podemos decidir como moldar uma personalidade, um espaço de ser, decidir e amadurecer.

 

Recordo-me de uma conversa animada entre os filósofos brasileiros Mário Cortella e Clóvis de Barros Filho que discutiam entre si a questão da liberdade humana, e um deles realçava, citando Karl Marx: «’o pior dos tecelões sempre será melhor que a melhor das aranhas’ que faz teias magníficas (…). Ainda que o pior tecelão não consiga fazer uma teia como a aranha, a aranha só consegue fazer a teia daquele modo. (…) A aranha tem um defeito [limitação]: ela nasceu pronta. (…) Nós temos uma grande vantagem: somos capazes de fazer de outro modo».

 

A vida humana é e faz-se original. Cada pessoa constrói o seu espaço de ser como uma densa esfera de possibilidades. O poder de escolha preenche-nos a vida com projetos, sonhos, critérios e sentido. E em vez de nos apertarmos em nichos que nos esmagam a criatividade até à medida da mesquinhez - pressionados por agendas e compromissos que nos parecem mais “sufocar” do que nos ajudar a viver - precisamos de nos reformular para não perder o alcance desse espaço de que somos feitos e em que nos fazemos. 

 

E a vida que se faz humana tende a ampliar-se. Toda ela clama por expansão e transcendência. Nenhum de nós é hoje somente o que foi outrora. Acumulamos experiências, aprendizagens, conquistas, fracassos, reconfiguramos desejos e atualizamos exigências.

 

Enfim, a vida humana começou com um sopro. Tornar-se mais humano é o processo de nos avolumarmos. Espacemo-nos…

Gustavo Cabral

Cronista

Engenheiro mecânico. Mestrado em Ciências Religiosas. Atualmente, professor de EMRC. Leigo Redentorista. Adepto de teologia e bíblia.

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