Velas na escuridão
“Quem, porventura, traz uma candeia para colocá-la sob
uma vasilha ou debaixo de uma cama?" (Mc 4, 21)
Na sua obra, O Principezinho, Antoine de Saint-Exupéry dizia que “o essencial é invisível aos olhos” e que “só se vê bem com o coração”. Ontem, antes de adormecer pus-me a pensar na atualidade gritante destas orações. No imediatismo sôfrego dos tempos que, literalmente, correm, somos incessantemente bombardeados de imagens e vídeos ad nauseam sem oportunidade de parar tempo suficiente para refletir e negociar os termos de um cessar fogo. Olhamos para tudo sem nada ver. Desviamos o olhar do que nos incomoda e do que não conseguimos fazer desaparecer com um simples ‘delete’ ou ‘scroll’, como quem atravessa a rua para não ser abordado pela miséria alheia.
Assistimos impávidos à crescente violência entre jovens para quem tirar uma vida se tornou tão banal e inconsequente como num dos ‘Fortnite’ em voga, cuja publicidade incita os jogadores a serem “a última pessoa de pé”, pois é matando que se passa de nível. Jovens que em vez de acudirem um colega diferente, preferem filmar a violência nos telemóveis para “postar” nas suas redes ‘antissociais’ de preferência. Jovens que tiram fotos debaixo de saias para partilhar com os amigos IRL (in real life) ou virtuais. Jovens que vivem vidas virtuais, onde ‘incels’ (involuntary celibate), cobardes e predadores se escondem atrás dos seus ecrãs, cuspindo ódio. Jovens que hoje precisam deste tipo de vocabulário para distinguir as suas vidas ambivalentes.
Por sua vez, os adultos que veem o fruto do seu esforço e trabalho cada vez mais desvalorizado, a sua autonomia e dignidades mais ameaçadas, descrentes no futuro e desiludidos com o presente, que nada mais tem sido do que um ‘presente envenenado’, abstêm-se de incutir valores benevolentes nos mais novos, valores que lhes foram incutidos, mas que face às suas realidade, sentem não lhes ter valido de nada. Abstêm-se como quem decide não exercer o seu direito ao voto porque todos os políticos são ‘farinha do mesmo saco’, lutando apenas pelos seus interesses e não pelo bem comum. Delegam sem escrutínio a educação a portáteis, tablets, telemóveis, ‘Chat GPT’ e afins ou a “influencers” que nada mais querem do que seguidores para enriquecerem e para glória pessoal, levando muitos a comprar o que não precisam e a serem endoutrinados na raiva, no rancor, na mesquinhez no desrespeito à autoridade e nas leis. Limitam o tempo de ecrã, mas demitem-se de controlar o conteúdo a que os jovens são diariamente expostos.
Deificámos o virtual e marginalizámos o real, afinal, o que importa se há pessoas, nomeadamente crianças, no limiar da fome por lhes ser negada ajuda humanitária, o que importa a quantidade de vidas dizimadas por guerras impiedosas, sobreviventes a quem a dignidade foi roubada, mulheres sem direito à educação e a sentirem-se seguras em suas casas como fora delas e imigrantes que fazem o trabalho que não queremos fazer, que são explorados, marginalizados e culpabilizados por tudo o que nos desagrada na sociedade?
Contudo, confesso que me sinto agraciada cada vez que entro numa sala de aulas. Vejo adolescentes curiosos, que ainda têm um raciocínio crítico, que demonstram bondade nos seus gestos, mesmo que por vezes sejam faladores ou irrequietos. Vejo jovens que rezam, impensável e condenável numa escola pública, jovens capazes de estar num recinto com milhares de outros jovens em silêncio e em adoração, jovens que peregrinam, fazem vigílias, que se preparam para receber os sacramentos e que se põem ao serviço dos outros. Jovens que têm esperança no futuro e na sua capacidade de deixar o mundo melhor do que o encontraram.
Jovens que prescindem do seu intervalo para ir à missa de corpo presente de um educador do colégio, que rezaram por ele durante o tempo em que esteve hospitalizado, ele que tocou a vida de cada um deles de maneiras tão diferentes. Jovens citadinos que com ele aprenderam a cultivar a terra, a cuidar de animais e tantas outras coisas que não costumam fazer parte do quotidiano de uma metrópole. Jovens que percebem o valor da vida humana, que compreendem a entrega de Jesus como maior prova de amor pela humanidade. Jovens que sabem que basta uma vela para iluminar a escuridão.