Um mundo ao contrário.

Crónicas 12 agosto 2017  •  Tempo de Leitura: 7

Hoje fui a uma estação de serviço, onde reparei na cena, que seria caricata se não fosse tão corriqueira, de um homem a atestar o depósito enquanto falava ao telefone mesmo em frente a um autocolante com as várias proibições típicas de uma estação de serviço, entre as quais a de usar o telemóvel. Ainda ouvi, enquanto voltava para o meu carro o dito senhor queixar-se de cortes na rede.

No caminho para casa comecei a interrogar-me sobre qual terá sido o momento em que nos demitimos de ser cidadãos e onde foi exatamente que enterrámos o nosso civismo. Quando é que 'proibido' passou a ser sinónimo de permitido, 'político' sinónimo de corrupto e 'liberdade' sinónimo de licença para fazer o que me der na real gana, sem ter que pensar na consequência que os meus atos podem ter na vida dos outros?

A caminho das eleições autárquicas, ouvimos aqueles comentários típicos de quem se demite de exigir um governo que se preocupe com o bem comum: "É corrupto, mas tem obras feitas"! Que sistema eleitoral é este que permite a candidatura de pessoas condenadas pela justiça só porque conseguem recolher o número de assinaturas necessárias? Desde quando passou a ser indiferente a idoneidade de uma pessoa e um registo criminal limpo? Se não o exigimos dos nossos políticos, porque o exigimos para outras profissões?

Há uns meses tive uma lesão que me obrigou a ir regularmente ao hospital e, mais recentemente, fui várias vezes visitar um amigo que estava hospitalizado. Nas minhas várias passagens não pude deixar de reparar como o nosso mundo está ao contrário. Um mundo no qual os queixumes dos doentes incomodam as nossas chamadas telefónicas. Que falta de civismo dos doentes! Até parece que estão hospitalizados porque precisam de cuidados médicos e tempo para recuperarem em paz. Mas o mais surpreendente é ver a indiferença do pessoal médico e dos funcionários que se habituaram de tal modo ao ininterrupto tocar de telemóveis que já nem pedem às pessoas para desligarem os telemóveis ou, no mínimo dos mínimos, para os porem em silêncio, de modo a respeitar o necessário descanso dos pacientes.

Sou católica por isso vou regularmente à missa, momento que, independentemente das convicções religiosas de cada um, para os crentes é um momento de louvor e de ação de graças pela vida que Jesus Cristo entregou livremente para a salvação de todos os homens, mas nem aí, onde o divino toca o humano e o humano participa no divino, estamos livres do som dos telemóveis. Melhor ainda é quando o telemóvel toca e a pessoa atende e, numa voz abafada, diz "estou na missa, não posso falar agora". Então, porque é que atendeu? De que serve a tecnologia que nos permite pôr um telemóvel em silêncio ou em modo de voo ou ainda de rejeitar uma chamada, se o problema maior é que não sabemos ou não queremos nos desligar deles?

Habituámos-nos, de tal modo, a sermos 'maltratados' nos locais de atendimento ao público que nem nos passa pela cabeça reclamar, por escrito, cada vez que um funcionário descarrega as suas frustrações em nós. Será assim tão difícil sorrir, ser educado e prestável àqueles que recorrem a esses balcões para serem ajudados? Ou será que alguém imagina que passar uma manhã nas finanças ou nos correios ou na segurança social é uma coisa que os cidadãos fazem por gosto, como um programa alternativo a ir dar um mergulho no mar? Mas pior ainda, porque nos sujeitamos a isso?

Há uns anos tive um acidente, ou melhor, provoquei um acidente por estar a mandar uma sms. Ia atrasada e quis avisar as pessoas que estavam à espera da minha boleia do meu atraso, mas saiu-me o tiro pela culatra e fui bater em três carros estacionados. Não tendo provocado danos pessoais a ninguém, provoquei danos materiais e causei transtornos aos proprietários dos veículos sinistrados. Passados uns dias, fui-me confessar e quando acabei o sacerdote perguntou-me: "não tens mais nada para confessar"? Acho que não, respondi hesitante. "Então não provocaste um acidente por desrespeitares as regras de trânsito?", retorquiu o sacerdote. As palavras do sacerdote, que por sinal é também um grande amigo, fizeram-me pensar que, de facto, as regras de trânsito existem para garantir a segurança de todos os automobilistas e de todos os peões. Se pertencemos a uma sociedade coimplicamo-nos e comprometemo-nos a respeitar as suas leis e regras. Nenhuma deve ser menos importante só porque não nos convém. Pergunto-me quantos dos sinistros registados diariamente não são fruto do mesmo egoísmo que nos faz correr riscos desnecessários sem pensar na vidas dos outros que circulam nas mesmas vias que nós? Quando é que se tornou aceitável vivermos como 'Chico-espertos', a furar filas e a fazer manobras perigosas? Será que os dois minutos que eventualmente poupamos vale a vida de alguém?

Longe de querer ser moralista, Deus bem sabe que também eu tenho caminho a fazer nas coisas que aponto, faço esta partilha para nos pôr a refletir sobre que tipo de sociedade queremos? Que futuro estamos talhar para os que vierem depois de nós? Que exemplo estamos a ser para os que já cá estão? Neste mundo onde hoje semeamos a indiferença e o egoísmo e nos demitimos das nossas responsabilidades, o que esperamos colher amanhã? Quando é que vamos aprender, como diz uma grande amiga, que "as pessoas que atravessamos passam a ser caminho e responsabilidade nossa [porque] não se pode conhecer e ver alguém e, no fim, ficar como sempre se esteve" (cf. Marta Arrais)?

Raquel Dias

Cronista Rezar a vida

Licenciada em Línguas e Literaturas Modernas e apaixonada pela escrita. Voluntária na paróquia de São Julião da Barra. Ovelha perdida que reencontrou o caminho. Hoje, de coração cheio e grato, procura transmitir a alegria do Evangelho a todos os que cruzam o seu caminho. \"Porque, se alguém acolheu este amor que lhe devolve o sentido da vida, como é que pode conter o desejo de o comunicar aos outros?\" (cf. 8. Evangelii Gaudium)

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