Binómio
O mundo está tão esquisito que começamos a duvidar daquilo que é ou não verdade. Porém, na base de qualquer dúvida está a procura da verdade e a confiança de que podemos conhecê-la e isso tem valor. Aparentemente, quem duvida não parece ter fé, mas a fé é muito mais do que a ausência de dúvida. Para compreendermos as nossas dúvidas precisamos de um coração e mente serenos. Mas chegar a esse estado diante daquilo que acontece no mundo é um grande desafio. É preciso pensar naquilo em que acreditamos, como acreditar naquilo que pensamos, diria Santo Agostinho. Uma compreensão saudável da dúvida é tão importante como uma compreensão saudável da fé. Fé e dúvida são um binómio que esconde um grande potencial de vivência espiritual.
A dúvida é incapaz de ser genuína sem fé, e a fé de ser genuína sem a dúvida. Pois, se duvidarmos ao acreditar, também acreditamos ao duvidar. Caso contrário, viveríamos de desinteresse em desinteresse, sem nada que desse sentido à nossa vida. Entrar no binómio fé-dúvida é reconhecer que dentro de nós habitam duas mentes. Aliás, duvidar que vem do Latim dubitare tem na sua raíz a palavra “duo” de dois, ou seja, esta incerteza que a mente experimenta entre duas coisas. Entre acreditar que significa estar dentro de uma das mentes e não acreditar que nos leva a entrar dentro da outra mente. Quando duvidamos saltitamos entre uma mente e outra, ou seja, entre acreditar e não-acreditar e, por isso, o que duvida está em duas mentes. Diz Os Guiness que escreveu em profundidade sobre a dúvida que — «o coração da dúvida é um coração dividido». Duvidar desconforta, mas isso também tem valor.
É muito comum pensar que no binómio fé-dúvida existe uma oposição entre as partes. Ou que a dúvida é uma palavra alternativa a descrença, mas não é bem assim. Pelo facto de estar em duas mentes, a dúvida é como um estado mental de suspensão entre acreditar e não acreditar. Ao contrário do que as pessoas pensam quando dizem a fé entra quando desconhecemos, na perspectiva do binómio, fé e conhecimento são inseparáveis. Pois, sem fé na possibilidade de conhecer seria impossível conhecer. Por isso, a fé genuína depende do conhecimento. E se a dúvida for um impulso a procurar conhecer mais e melhor, terá feito um serviço à fé, não uma oposição.
Existem pessoas que instrumentalizam a dúvida para justificar a ausência de fé, mas isso seria o mesmo que instrumentalizar a fé para justifcar a ausência de dúvidas. Duvidar é humano, não uma atitude típica daquele que afirma não ter fé. Aliás, quando não existe fé, curiosamente, as pessoas vivem de certezas e não existe espaço para a dúvida. Essa foi a minha experiência quando durante uns dois a três anos entrei em diálogos longos e persistentes com ateus em blogs na internet. A um dado momento, não dava por mim a esclarecer qualquer aspecto da fé que vivia, mas a incutir a dúvida. Sentia, de algum modo, aquilo que Anne Lamott expressava quando diz que a dúvida não é inimiga da verdade, mas a certeza. Essa retira espaço ao aprofundamento e o preço pago é a destruição do binómio fé-dúvida como dois elementos de uma só realidade cujo objectivo é aproximar-nos da verdade.
Quando alguém fala de Deus em quem não acredita é muito difícil de encontrar o espaço para entender o modo como compreender Deus. E quando surge a oportunidade de referir o Deus em quem não acredita (ou que acredita), não é raro perceber como algumas pessoas têm uma visão muito diminuta de Deus. Quando isso acontece, a fé não encontra espaço para se desenvolver por si, e a dúvida torna-se uma expressão desse desconforto. Daí o valor grande deste binómio quando vivido com autenticidade.
Penso que estamos cada vez mais influenciados pela pressa de querer saber e compreender as coisas pela velocidade com que a informação flui entre nós. Porém, todo o processo de compreensão profunda requer serenidade e tempo.
Assim como o nosso cérebro não está preparado para ler e quando o fazemos, os neurónios reorganizam-se e transformamo-nos fisicamente com a leitura, também não estamos preparados para tirar todo o potencial deste binómio fé-dúvida. Porém, quando nos damos conta disso, nunca é tarde para dar o primeiro passo, sejamos crentes ou não-crentes: o passo de acolher a dúvida como um bem. Depois, basta que o silêncio trabalhe dentro de nós o que a vivência deste binómio suscitar. Seremos como lagartas que se metamorfoseiam num casulo do binómio para saírem borboletas que oferecem ao mundo o esplendor da verdade.
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