Conto: O jovem que tocava flauta

Conto 15 agosto 2020  •  Tempo de Leitura: 9

Toda a gente dizia que a música era uma das muitas coisas extraordinárias que herdara do pai e da mãe. O rapaz revelava uma sensibilidade melódica invulgar e toda a vizinhança o elogiava pelo seu singular talento naquela que muitas consideravam a mais divina das artes.

 

Desde que a mãe lhe dissera que um coro de anjinhos tinha cantado lindas e singelas canções quando nasceu e o pai lhe contara que, entre os muitos presentes que lhe haviam oferecido quando era bebé, uma guizeira foi o que mais o encantou, o rapaz começou a evidenciar uma  queda musical ímpar.

 

Afinal, não era de estranhar que assim fosse. O rapaz recordava frequentemente aos amigos que a mãe cantava suaves melodias quando o embalava em pequenino para o adormecer e estava sempre a cantarolar enquanto cozinhava, fazia as lides da casa ou lavava a roupa no rio. Já o pai preferia assobiar, enquanto trabalhava na carpintaria e, de vez em quando, punha-se a fazer percussão com as madeiras e as ferramentas de trabalho.

 

O rapaz desde cedo demonstrou gosto e apetência para a música e ficava enternecido ao escutar a mãe e o pai a cantar os salmos e outras orações. Depressa percebeu que rezar através de cânticos era uma forma muito bela de louvar a Deus e exprimir os sentimentos mais profundos do coração. Fosse em momentos de tristeza ou alegria, angústia ou felicidade, prece ou ação de graças, nada melhor do que elevar a mente e a voz ao Senhor da Vida através da música.

 

Um dia, por ocasião de uma festa religiosa importante, o pai levou o rapaz a um concerto na praça da cidade. Diante da sinagoga, muitos eram os músicos que deliciavam a plateia com a interpretação instrumental de várias músicas do cancioneiro popular e sagrado.

 

O rapaz estava maravilhado com as belas e variadas sonoridades dos instrumentos de corda, onde sobressaíam a harpa, a cítara, a lira e o alaúde, dos instrumentos de sopro como a buzina, a trombeta, a flauta e o pífaro e dos instrumentos de percussão em que se destacavam o pandeiro, o tambor, a adufe e os címbalos.

 

Durante vários dias, o rapaz não falou de outra coisa em casa pois aquela tarde fora verdadeiramente inesquecível. Então, como o pai se apercebeu do seu enorme entusiasmo pela música e pelos instrumentos musicais, decidiu construir com as suas próprias mãos um tambor para o filho.

 

A surpresa foi tão grande que aquele foi dos dias mais felizes da sua vida e, a partir de então, para onde quer que fosse, o rapaz levava o seu tambor e tocava e cantava com uma jovialidade e ternura que impressionava toda a gente. Frequentemente, muitos amigos e amigas juntavam-se a ele na rua ou nas montanhas a cantar e a dançar músicas religiosas e profanas conhecidas.

 

Quando ia às cerimónias no templo ou participava nas peregrinações aos lugares santos, gostava muito de cantar as maravilhas que Deus operara na história do seu povo e em cada um em particular e apreciava imenso as vozes dos solistas e dos coros que louvavam o Senhor, acompanhados solenemente pelos melhores instrumentistas que se conheciam na região.

 

Quando nada o fazia esperar, o pai partiu para o céu e a mágoa apoderou-se do coração do jovem e da sua mãe. Deixou de haver alegria e deixou de haver música. No entanto, como o rapaz e a mãe passavam muito tempo na carpintaria do pai a pensar e a falar dele, ele lembrou-se de o homenagear através da construção de uma flauta.

 

Após muitos anos a ver e a colaborar com pai no ofício das madeiras, o rapaz pôs mãos à obra e, com uma paciência, perícia e destreza notáveis, conseguiu fazer a mais fina e formosa flauta que jamais tinha sido vista.

 

Durante dias a fio, o jovem empenhou-se a aprender a tocar aquele instrumento que sempre admirara pela suavidade e delicadeza que caracterizava o seu timbre. Ia muitas vezes a casa de um velhinho seu vizinho que o ensinou com muito carinho e sabedoria. A partir de então, o rapaz tocava flauta para a sua mãe e para os seus amigos e era visto muitas vezes com o instrumento artesanal que construíra, na mão ou na bolsa, por todo o lado onde se deslocasse.

 

À medida que se tornava mais velho, a par da flauta, começou também a dar valor ao silêncio. Intercalava bonitas melodias com o instrumento de sopro com momentos de reflexão e contemplação. Dizia muitas vezes que o silêncio também era música e, às vezes, era a mais bela melodia do universo. Gostava muito de ir dar uns passeios demorados pelos campos para ouvir a cantoria dos passarinhos ou sentar-se junto ao mar a ouvir as ondas com os seus ritmos cadenciados, e no alto dos montes, a escutar os concertos do vento. 

 

Um dia, decidiu abrir horizontes e palmilhou toda a região com um grupo de amigos. Gostava de partilhar com toda a gente com quem se cruzava o que sentia e pensava sobre o ser humano, a vida e Deus. Muitas vezes, referia-se à harmonia das notas musicais na partitura e à importância de todas as vozes num coro ou de todos instrumentos numa orquestra para falar do sentido da existência em comunidade neste mundo ao jeito do Reino dos Céus.

 

A fama do jovem que tocava lindas melodias numa flauta e contava histórias surpreendentes espalhou-se rapidamente e muitos eram os que o seguiam para o escutar. Muitas vezes, sentava-se num descampado, à beira de um lago ou numa praça, e começava a tocar um trecho musical e muita gente se aproximava e ficava horas a ouvi-lo tocar e a falar sobre a fé, a esperança e o amor.

 

Aqueles que mais deslumbrados ficavam com o seu talento musical e com as suas bonitas e profundas palavras eram as crianças que dançavam e cantavam alegremente ao som das suas cantigas e lhe pediam que brincasse com elas e lhes contasse mais histórias.

 

Um dia, depois de ter jantado com os seus amigos, cantou com eles alguns salmos e hinos e disse-lhes que desejava muito que a Terra fosse como o céu, mas havia demasiada gente como que a desafinar. Ele gostava muito que a humanidade amasse mais e melhor e que as pessoas fossem mais amigas, justas e solidárias, pois somente assim a existência era harmoniosa e correspondia à composição musical do autor divino.

 

Apesar de muitos gostarem de si, muitos eram também aqueles que se sentiam incomodados com as suas palavras e lhe desejavam a morte. Pouco antes de morrer, deu à mãe a sua flauta para que a guardasse e disse aos seus amigos que ele era uma espécie de clave de sol da existência humana ao estilo do Pai e que a vida era uma maravilhosa sinfonia que valia a pena viver, tocar e cantar.

 

Surpreendentemente, a mensagem do jovem que tocava flauta tornou-se mais viva do que nunca e o número daqueles que o quiseram seguir e imitar cresceu imensamente. Reuniam-se em muitos sítios e louvavam a Deus com bonitas e alegres canções, pois sentiam que a Vida tinha vencido a morte. Muitos aprenderam a tocar flauta e chamavam ao jovem ‘mestre e maestro’ das suas vidas.

Paulo Costa

Conto

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