Viajantes, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 21 agosto 2021  •  Tempo de Leitura: 4

Uma das características do nosso tempo é a omnipresente tecnologia de mapeamento a que todos recorremos para as pequenas e grandes deslocações quotidianas. Parece que sem ela já não sabemos viajar. Hoje um telemóvel ligado à internet fornece informação mais detalhada do que um atlas; com o GPS sentimo-nos confortavelmente guiados através de territórios complexos e desconhecidos; confiamo-nos completamente aos itinerários que nos são propostos pelo Google Maps. O mundo deixou de precisar de exploradores! Todos nos recordamos da bizarra personagem do geógrafo que surge no “Principezinho”, de Saint-Exupéry: um sedentário que fica à espera do testemunho trazido pelos exploradores para definir o conhecimento do seu próprio território. Os exploradores é que atravessam rios, montanhas, desertos e oceanos... Ele dizia pomposamente ser um geógrafo, não um explorador. Contudo, quando o Principezinho lhe pede informações concretas sobre o seu planeta ele não tem nada para contar.

 

Não podemos ser dicotómicos a ponto de recusar ver na parafernália tecnológica que está hoje à nossa disposição um auxiliar útil para a funcionalidade da vida. Porém, não devemos ser ingénuos a ponto de não registar a mutação acelerada por este surto tecnológico. Um importante filósofo contemporâneo, num dos seus ensaios, refere a emergência de uma nova ontologia. E não se trata propriamente de uma blague, pois a tecnologia altera efetivamente o comportamento humano. Modificando os instrumentos que operam a nossa prática do mundo, modificamos a nossa relação com as coisas e connosco próprios. O instrumento transforma aqueles que o usam. Neste sentido, o atual excesso de tecnologia como que empobrece, pois nos dispensa da experiência original do espaço, em relação ao qual estamos cada vez mais protegidos e distantes. Deixamos, por exemplo, de confiar nos nossos olhos, no nosso tato, no nosso ouvido. Afastamo-nos da experiência, do contacto com a morfologia da paisagem, da viagem apreendida pelos nossos pés.

 

Modificando os instrumentos que operam a nossa prática do mundo, modificamos a nossa relação com as coisas e connosco próprios. O instrumento transforma aqueles que o usam

 

Talvez como reação a esta tendência sempre mais dominante se multiplicam as vozes que recomendam que larguemos os GPS e nos entreguemos desarmados à aventura do caminho, sem outros instrumentos de navegação que a observação do sol e das estrelas, a atenção à configuração do território ou às suas linhas. Uma coisa é a previsibilidade dos percursos turísticos, sobretudo na sua aceção massificada, outra é o sentimento do viajante que se entrega radicalmente à viagem, permitindo que seja o caminho a revelar-se e a guiar os seus passos na surpresa. De facto, dos grandes relatos de nomadismo aprendemos que não são os viajantes que vão ao encontro das estradas, mas as estradas que não desistem de vir, sempre de novo, ao encontro dos viajantes. Isso, porém, comporta a inversão do paradigma cultural vigente. Recordo três princípios que um dia li no diário de um alpinista:

 

1) Os momentos em que não se conhece o caminho são os mais interessantes;

2) Quando nos relacionamos com o desconhecido este se revela;

3) Não são os viajantes que encontram as estradas, mas as estradas que encontram os viajantes.

 

Em “O Caminho Estreito para o Longínquo Norte”, o poeta japonês Matsuo Bashō deixou escrito: “Os meses e os dias são viajantes da eternidade. Assim como o ano que passa e o ano que vem. Para aqueles que se deixam flutuar a bordo de barcos ou envelhecem conduzindo cavalos, todos os dias são viagem e a sua casa é o espaço sem fim. Dos homens do passado, muitos morreram em plena rota. A mim mesmo, desde há anos, me perseguem pensamentos de vagabundo, mal vejo uma nuvem arrastada pelo vento.”

 

[SEMANÁRIO#2542 - 16/7/21]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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