Sobre o bom uso dos estudos, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 17 maio 2021  •  Tempo de Leitura: 5

Existe um texto de Simone Weil que frequento há anos (para ser honesto, deveria dizer que luto com ele há anos), que me comove intensamente de cada vez que o leio, e que, confesso, me continua a dar que fazer. Não tenho com ele uma relação propriamente apaziguada. Julgo, contudo, que os grandes textos que encontramos na vida não têm por função tranquilizar-nos. Como explicava a própria Simone Weil, “o sofrimento não tem a ver com a alegria; mas a alegria tem a ver com o sofrimento”. Isto é: a alegria não é um estado de isenção, mas requer de nós uma exposição interminável ao adestramento, à paixão e à prova.

 

O texto tem um título extenso e culturalmente contracorrente: “Reflexões sobre o bom uso dos estudos escolares em vista do Amor a Deus”. Falar assim do estudo é reconhecer que este não se trata simplesmente de uma técnica, como se fosse um território neutro do ponto de vista emocional ou espiritual. E colocar-lhe ao lado o adjetivo “escolar” não significa cristalizá-lo em função de uma determinada utilidade, mas implica sim remontar àquilo que a palavra grega scholé indicava: o tempo que o cidadão dedicava a si mesmo e à sua formação (à sua paideia), que deveria ser completa e integral, expressando-se como enkyklios, isto é, circular no sentido da abrangência e universal na ordem do objeto.

 

Simone Weil não pretendeu especular sobre as melhores vias para o sucesso pedagógico. Desse ponto de vista, o material que fornece é escasso, para não dizer dececionante. Para ela, o que se joga no domínio da aprendizagem e do estudo é simplesmente isto: compreender que a própria vocação outra coisa não é do que a orientação completa da vida para a verdade, e que existir só ganha sentido na obediência a essa vocação, num desejo ardente pela verdade e num interminável esforço de atenção que a aproximação à verdade supõe. Só quando tal está salvaguardado, como defendia Simone, os estudos escolares se tornam um desses campos que encerram uma pérola. Por isso, argumenta deste modo: “Se procuramos com verdadeira atenção a solução de um problema de geometria e, ao fim de uma hora, não estamos mais avançados do que no começo, avançámos, todavia — garante a filósofa —, durante cada minuto dessa hora, numa outra dimensão mais misteriosa. Sem que o sintamos, sem que o saibamos, este esforço aparentemente estéril e sem fruto introduziu mais luz na alma.”

 

A vocação outra coisa não é do que a orientação completa da vida para a verdade

 

É curioso que, por exemplo, a sua primeira grande crise existencial tenha ocorrido na adolescência, aos 14 anos de idade. O seu irmão André Weil, um extraordinário talento matemático, apenas dois anos mais velho do que ela, fora admitido com estatuto excecional no departamento científico da École Normale Supérieure. A comparação com a inteligência fulgurante do irmão era inevitável e Simone afunda-se num estado de prostração, que não nascia tanto da inveja quanto do medo de que, sendo menos dotada intelectualmente, ficasse, por isso, excluída da procura da verdade. E ela preferia morrer a considerar-se capturada por semelhante privação. De facto, julgava, nessa época, que só as pessoas muito inteligentes estavam em condições de aceder à verdade. A experiência de terrível sofrimento, como ocorrerá diversas vezes ao longo do seu percurso, será a travessia para um entendimento novo que a autora descreve na primeira pessoa na sua “Autobiografia espiritual”: “Após meses de trevas interiores, improvisamente e para sempre, tive a certeza de que qualquer ser humano, mesmo se as suas faculdades naturais são quase nulas, penetra no reino da verdade reservado ao génio, se deseja com todas as forças a verdade e aplica-se na atenção para atingi-la... A certeza por mim alcançada é que quando se deseja um pouco de pão não se recebem pedras.”

 

[SEMANÁRIO#2533 - 14/5/21]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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