Chegar a Fátima a pé, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 10 maio 2021  •  Tempo de Leitura: 5

Há outros modos de chegar a Fátima, mas nenhum é tão íntimo como quando se chega a pé. Os peregrinos descobrem nos longos quilómetros de estrada, por atalhos e estradas secundárias, que Fátima começa muito antes de Fátima. Fátima começa numa sede que, de repente, assalta a nossa vida e que a princípio, talvez, nem consigamos bem definir. Numa inquietação que não é por isto ou por aquilo, mas que detetamos, com surpresa, em nós próprios. Num desassossego que nos mói devagarinho e que aparentemente não se justifica, pois à superfície tudo se diria conforme e certo. Fátima começa a muitas léguas de profundidade, no mistério de cada coração. Começa, por exemplo, nesse desejo de espaço e de amplidão que os nossos quotidianos férreos não consentem; nessa necessidade que brota não sabemos donde, mas que depois se torna inadiável, de um encontro real com o silêncio; de provar aquela liberdade face às coisas que os grandes caminhantes, no seu estilo frugal, escolhem; de nos tornarmos disponíveis para uma experiência espiritual sem a qual, compreendemos então, a vida permanece rasa, imprecisa e incompleta. Não tenho dúvidas que é sempre uma procura de verdade que faz sair das suas casas os peregrinos e os leva a atravessar os baldios, descobrindo, nesse movimento endereçado a um centro, a possibilidade de realizar uma viagem de reconciliação e de renascimento.

 

É sempre uma procura de verdade que faz sair das suas casas os peregrinos e os leva a atravessar os baldios, descobrindo a possibilidade de realizar uma viagem de reconciliação e de renascimento

 

A mensagem confiada aos pastorinhos de Fátima é de uma essencialidade límpida que se resume nestas três palavras: oração, penitência e conversão. Aos ouvidos contemporâneos soará porventura como uma terminologia arcaizante que caiu já em desuso. Quem se põe a caminho, porém, ativa o extraordinário potencial que essas palavras contêm. Quando fui capelão da Universidade Católica acompanhei muitas peregrinações de universitários a Fátima. Saíamos no dia 8, bem cedo, e fazíamo-nos à estrada, de modo a estar no santuário na celebração da vigília, no dia 12. Posso testemunhar que uma experiência decisiva era aquela da oração, que para muitos jovens acontecia pela primeira vez. A possibilidade de chamar a Deus “Pai”, e de senti-lo efetivamente assim, marca na vida um antes e um depois. Aqueles quilómetros de estrada em que cada um fazia silêncio para rezar ou os tempos de oração comunitária que pontuavam as jornadas tinham um impacto transformador em cada um. Cada vida é um lugar sagrado que mesmo a oração mais simples revela, exprime e confirma. Depois, há que dizer, uma peregrinação não acontece sem penitência. Penitência é, na sua tradução material, a desinstalação, a saída do conforto do nosso mundo habitual, a renúncia voluntária aos bens que possuímos para dispor-se a reaprender o essencial, o esforço e sacrifício que a entrega ao caminho nos pedem. Mas na sua tradução espiritual, a penitência é também a remoção interior do nosso egocentrismo, muito mais despótico e presente do que aceitamos normalmente admitir, para nos colocarmos com humildade como servidores, como o exemplo de Maria nos mostra. Por fim, a conversão é o desfecho deste processo de transformação e de renascimento espirituais que nos fornece uma nova visão da vida e do que nos cabe realizar.

 

Certamente a atividade turística é relevante em Fátima, se pensarmos em todas as estruturas necessárias para acolher aquele número de pessoas. Mas Fátima não é uma meta de turismo, e é bom que o reconheçamos claramente. Fátima é uma reserva espiritual da contemporaneidade. A sua geografia não coincide exatamente com a malha urbana. A sua topografia não é apenas aquela que se vê. Os peregrinos sabem que Fátima começa muito antes e se prolonga até muito depois.

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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