A Amizade Social, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 7 novembro 2020  •  Tempo de Leitura: 4

Pode soar como uma categoria inusitada, e a que reagimos com estranheza, esta da “amizade social” que o Papa Francisco coloca no centro da recente encíclica “Fratelli Tutti”. Habituamo-nos a declinar a amizade como uma categoria pessoal e privada e, para falar das relações em sociedade, recorremos a termos mais latos como respeito, solidariedade, civismo, cidadania, etc. Reservamos a palavra amizade ao círculo eletivo dos nossos afetos, coisa aliás aconselhada por várias tradições sapienciais, a começar por aquela bíblica.

 

Mas a proposta do Papa parte da situação do nosso tempo, onde a globalização nos tornou vizinhos, mas não irmãos uns dos outros. Pelo contrário, estamos mais distantes e sós, mais desagregados e vulneráveis, limitados ao estatuto de espectadores e consumidores. De forma manifesta, as nossas sociedades mostram dificuldades em constituir-se como um projeto que diga respeito a todos. Obviamente não nos sentimos companhia do mesmo barco e locatários da mesma casa comum. Como se escreve na encíclica, “partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma seleção que favorece um sector humano” em detrimento de outro (“FT”, n. 18).

 

A amizade não é um clube exclusivo, mas uma escola onde treinamos competências para serem universalmente aplicadas

 

A “amizade social” é uma tentativa de inverter esta situação. O seu ponto de partida é o basilar reconhecimento “de quanto vale um ser humano, sempre e em qualquer circunstância” (“FT”, n. 106), considerando-o precioso e digno de todo o cuidado. Só exercitando esta visão da vida é que concretizaremos uma fraternidade aberta a todos. Contudo, precisamos, para isso, de transpor as cómodas fronteiras que nos aquietam. O desafio de Francisco é a irmos “mais além”, percebendo, por exemplo, que a amizade não é um clube exclusivo, mas uma escola onde treinamos competências para serem universalmente aplicadas. Os amigos que só cuidam dos seus amigos reduzem o horizonte da amizade. E, do mesmo modo, quando as famílias apenas se preocupam com o bem dos seus, e pretensamente esgotam aí a sua responsabilidade humana, algo de decisivo fica por cumprir. A experiência da amizade e do amor deve também servir para abrir o coração ao que está em redor, tornando-nos sensíveis a essa realidade, implicando-nos na sua qualificação ética, dotando-nos da generosidade para sairmos de nós mesmos e acolhermos a todos. Não existimos num vácuo, mas num contexto amplo e diversificado de relações pelo qual somos corresponsáveis.

 

Falando dos bens materiais e dos espirituais, o Papa chama a atenção para a necessidade de reconhecermos, com maior consciência, a função social de tudo o que possuímos, que não pode permanecer indiferente ao primeiro princípio de toda a ordem ético-social, que é o princípio do bem comum e da destinação universal dos bens criados. Os grupos fechados, que se constituem na prática como um “nós” contraposto ao mundo, rapidamente se tornam uma desculpa para o egoísmo social e a autoproteção dos seus interesses. Quer em relação aos bens materiais, como àqueles culturais, afetivos ou espirituais, somos desafiados a implementar o sentido positivo do direito de propriedade, que para Francisco consiste no seguinte: “guardo e cultivo algo que possuo, a fim de que possa ser uma contribuição para o bem de todos” (“FT”, n. 143). E o Papa não tem dúvidas: os heróis do futuro serão aqueles que souberem esquecer a lógica dos seus interesses e se decidam a romper o cerco atual da indiferença, sustentando amigável e universalmente uma palavra densa de verdade humana. A “amizade social” é uma categoria para enquadrar no âmbito da fraternidade, da prática comprometida da solidariedade e de uma ativa compaixão. E aí todos podemos fazer mais.

 

[SEMANÁRIO#2502 - 10/10/20]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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