Silêncio, por Tolentino Mendonça

Razões para Acreditar 12 outubro 2020  •  Tempo de Leitura: 13

Excertos das intervenções do Card. José Tolentino Mendonça durante o diálogo com o compositor e cantor Pedro Abrunhosa, no âmbito da iniciativa “Encontros Fora da Caixa”, que decorreu a 24 de julho, em Mangualde, cidade do interior de Portugal. “No princípio… Era o silêncio” foi o tema da sessão.

 

A interioridade territorial lembra-nos que cada um de nós, cada ser humano, transporta também uma interioridade; e, muitas vezes, o problema da interioridade do território, é igual à interioridade humana: fica esquecido, abandonado, relegado para um segundo plano, tem projetos de desenvolvimento verdadeiro, sustentável, remetido para uma espécie de lugar secundário, enquanto a exterioridade acaba por ter todo o espaço.»

 

Ora, quando um ser humano deixa a sua interioridade por integrar e desenvolver, o que é que acontece? A vida perde a sua coesão, desagregamo-nos. E por isso, falar do silêncio, não é apenas uma conversa um pouco esotérica para falar com um cardeal, mas é uma conversa política sobre os seres humanos, e sobre a forma como as nossas sociedades são chamadas a organizar-se. Porque se não damos espaço para o crescimento interior, para que cada um possa escutar até ao fim a pergunta que traz, o enigma que é vivermos sobre a Terra, se cada um de nós não escutar o lugar onde vive, o lugar onde fala, se não se der condições para praticar uma hospitalidade genuína em relação ao real, há um empobrecimento muito grande da vida.

 

Por isso, o silêncio é indispensável. É uma condição da nossa existência. Sem o silêncio, as realidades sobrepõem-se – palavra acima de palavra –, e não damos espaço a uma audição efetiva da realidade, seja a externa, seja a nossa interior.

 

O silêncio costura-nos. É uma espécie de linha que atravessa todas as coisas da nossa vida, mesmo quando não nos apercebemos dele.

 

Eu comparo muito o silêncio àquilo que é o espaço entre as palavras num texto. Se as palavras não tivessem um espaço, não se leriam. Sem o silêncio, a nossa vida não se lê. É apenas um atropelar de vivências, de situações, mas nunca damos espaço a uma digestão, que é necessária para poder haver encontro, para poder haver revelação, para poder haver conhecimento. (…)

 

O silêncio que experimentámos nesta pandemia foi uma espécie de silêncio purificador. (…) Temos de fazer deste momento um momento de proferição de uma palavra, e de uma palavra com uma qualidade humana que reflita o melhor do nosso silêncio


Uma experiência que todos já fizemos, ou fazemos, é a de que o silêncio é difícil. Ou temos medo desse encontro mais profundo connosco próprios, com as perguntas, as dores, o desejo, as coisas resolvidas ou não do nosso coração, e há medo desse silêncio

 

O que acontece dentro de cada um, acontece também na vida comum. Um certo atordoamento que hoje se vive na malha das nossas cidades, por exemplo, ou em tantas situações sociais, é exatamente porque, se nos calarmos, o que é que ouvimos? Há a tentação de fugir à voz mais profunda que nos chega da vida. Mas se não formos capazes de ouvir a vida como ela é, a verdade, a espantosa verdade das coisas, como dizia Fernando Pessoa, nunca celebraremos o verdadeiro encontro connosco próprios, e não podemos adiar continuamente a nossa vida. Por isso, o silêncio é um parceiro na construção das pessoas, na construção da vida social.

 

Hoje vemos uma grande sedução pelo silêncio. E não é por acaso que num encontro improvável como este o tema escolhido foi o silêncio. Não é apenas uma intuição do Pedro nem uma intuição minha; é alguma coisa que nos chega do desejo coletivo, que é vivermos não apenas pela rama, mas sermos capazes de colher em profundidade a vida.  

 

Lembro-me de um poema de um poeta japonês, Matsuo Bashô, um “haikai”, em que ele diz: silêncio/ uma rã mergulha/ dentro de si. E este mergulho para o interior de nós é absolutamente indispensável. Sem isso, nós não somos. (…)

 

A dimensão do silêncio, e do silêncio de Deus, é uma categoria para dizer a dificuldade de acreditar e do caminho crente, é também um chamamento a perceber que, acima de tudo, temos de colocar a confiança


Para um poeta, a sua vocação primária é o silêncio, porque a poesia obriga a esse ato de escuta, de hospitalidade. Como para todo o artista – o Pedro sentirá isso, com certeza. A música é como a invenção do fogo, que aconteceu quando se bateram duas pedras; a música também nasce quando o silêncio se toca, se exaspera, se surpreende, e a música surge. Isto é fundamental para sabermos como é importante uma visão integral. (…)

 

O silêncio que experimentámos nesta pandemia foi uma espécie de silêncio purificador. (…)


Temos de fazer deste momento um momento de proferição de uma palavra, e de uma palavra com uma qualidade humana que reflita o melhor do nosso silêncio.

 

Por exemplo, o Pedro começou por falar dos abraços, dos afetos não expressos, das presenças que não pudemos manter; ora, todo esse capital de vida adiada, de silêncio, tem de nos levar a um compromisso maior.

 

Penso que este tempo de pandemia tem de ser um tempo de envolvimento de todos. A palavra «pandemia», «pan»-«demos», em grego quer dizer «todo o povo»; é uma coisa que diz respeito a toda a gente. Então, precisamos de nos sentir todos envolvidos, protagonistas deste momento da história, em que vamos precisar de muitas forças para manter a coesão, ou para reinventar uma coesão social, política, económica, afetiva, cultural, espiritual, que possa dar-nos o sentido de uma comunidade que não deixa ninguém para trás.

 

Isto é muito importante, e é uma palavra que vem deste silêncio que experimentamos com dor, com incómodo, mas que agora nos tem de motivar a repensar e projetar com confiança este difícil presente que estamos a viver. (…)

 

A sede é o nosso grande capital. É verdade que estamos num banco, e os euros, os dólares e as moedas são muito importantes, porque ajudam a viver; mas o grande capital humano, aquele que faz a diferença em nós, é a nossa sede, o nosso desejo, e o que estamos disponíveis para fazer com isso


O Evangelho de S. João diz que «no princípio era a palavra», que nós podemos traduzir como “no princípio era o desejo de comunicar”. Porque se acreditamos que Deus é amor, Ele é desejo de manifestar-se, de estabelecer um encontro.

 

Mas a revelação de Deus, e esse encontro, acontece também no silêncio. E, muitas vezes, num austero, difícil, noturno silêncio. Deus está ligado à questão do horizonte da vida, do significado da vida, das verdades fundamentais, e a essas verdades nós não acedemos de uma forma imediata, linear, fácil, mas acedemos a elas muitas vezes por um caminho que somente a confiança pode justificar.

 

A fé não absolve a dimensão trágica da vida, mas integra-a. Deus não deixa de ser nunca um mistério, seja para os não-crentes, seja também para os crentes. Por isso, a dimensão do silêncio, e do silêncio de Deus, é uma categoria para dizer a dificuldade de acreditar e do caminho crente, é também um chamamento a perceber que, acima de tudo, temos de colocar a confiança. E é na confiança que, pouco a pouco, de uma forma que muitas vezes, para nós, é uma surpresa, vamos percebendo o modo como Deus se revelou na história pessoal e na história do mundo.

 

Por isso, para a teologia, para a religião, o silêncio é muito importante, porque é através dele que ouvimos o falar escondido, misterioso, luminoso de Deus. (…)

 

Dante dizia que o amor move o sol e os outros astros. O amor é essa sede do outro, sede de infinito, sede de sentido, sede de felicidade, que mora, irremediavelmente, no coração insólito de um ser humano


Tudo é silêncio. E quando olhamos para a vida numa determinada dimensão, percebemos o silêncio mesmo numa pessoa que grita; porque há uma parte dela que grita, e há, talvez, a maior parte dela que permanece em silêncio. E se formos capazes de fixar o silêncio, vamos perceber que o silêncio está em toda a parte.

 

Eu, por exemplo, nesta casa, rodeado de livros, sei que há um silêncio em cada livro que é diferente de cada autor, sei que o mundo em meu redor é costurado desse silêncio, e sei que a palavra não interrompe o silêncio, que a palavra verdadeira é aquela capaz de prolongar e iluminar o nosso silêncio. (…)

 

O silêncio dá-nos uma grande capacidade de abraçar a vida, de a escutar até ao fim, de a viver apaixonadamente, que é a coisa mais importante. A ideia não é fazermos tudo para proteger a vida, isolando-a; não, a vida é para ser vivida, para ser dada, para encontrar um sentido, que esta mistura de sangue e de sonho que é a nossa vida possa ser lugar de uma combustão, de uma plenitude; a vida é para ser gasta.

 

Lembro-me de um poema do Carlos de Oliveira, «cantar/ é empurrar o tempo ao encontro das cidades futuras/ fique embora mais breve a nossa vida». A vida é breve, este é um caminho, mas temos de sentir que nesta brevidade, neste acender de fósforo, vivemos inteiramente, integralmente, aquilo que a vida é chamada a ser. O sentido está todo aí. (…)

 

A sede é o nosso grande capital. É verdade que estamos num banco, e os euros, os dólares e as moedas são muito importantes, porque ajudam a viver; mas o grande capital humano, aquele que faz a diferença em nós, é a nossa sede, o nosso desejo, e o que estamos disponíveis para fazer com isso.

 

Por isso, uma conversa como esta, em torno a valores como o silêncio, a comunidade, a sede, o desejo, é alguma coisa muito fundamental para todas as dimensões, porque é aquilo que move o mundo. Dante dizia que o amor move o sol e os outros astros. O amor é essa sede do outro, sede de infinito, sede de sentido, sede de felicidade, que mora, irremediavelmente, no coração insólito de um ser humano.

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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