Tesouros portugueses

Razões para Acreditar 30 maio 2019  •  Tempo de Leitura: 4

Deve-se ao Papa humanista Nicolau V (1447-1455) a decisão de inaugurar uma biblioteca pública no Vaticano que pudesse ter como finalidade “a utilidade comum dos homens de ciência”, tornando acessível a leitores externos o que, até então, era uma biblioteca para uso exclusivo da cúria papal. O Papa teve ainda o cuidado de enriquecê-la, doando não só a sua biblioteca particular, mas implementando uma política maciça de compras nos mercados livreiros do Oriente e Ocidente. O vasto plano que então germinava propunha-se construir uma verdadeira biblioteca universal, segundo critérios humanísticos. Não era, portanto, uma biblioteca especializada, por exemplo, em teologia ou ciências eclesiásticas, mas deveria cobrir todas as áreas do conhecimento humano, incluindo tanto o campo literário (com os clássicos não-cristãos latinos e gregos) como o científico (com a medicina, a astronomia, a matemática, as ciências naturais, etc). Os esforços de Nicolau V foram bem-sucedidos: à data da sua morte (1455), a Biblioteca Apostólica Vaticana era já uma das bibliotecas mais ricas do mundo, em qualidade e quantidade de textos. Esta política cultural foi mantida por seus sucessores e, em breve, tornar-se-ia imperioso, por exemplo, ampliar os espaços da própria biblioteca. Isso aconteceria por intervenção direta do Papa Sisto V, que encomendou ao arquiteto Domenico Fontana, em 1587, uma sede com as características necessárias para acolher aquela que era uma determinante instituição cultural no coração da Igreja.

 

O “Regimento do astrolábio e do quadrante”, o mais antigo opúsculo conhecido e impresso com regras náuticas, teve uma edição portuguesa, na oficina de Herman de Campos, nos inícios de 1500

 

Sendo hoje prevalentemente uma biblioteca patrimonial, com um acervo de oitenta mil manuscritos, com um milhão e seiscentos mil livros impressos, mais de cem mil desenhos, gravuras e impressões depositadas no seu gabinete gráfico e um departamento numismático que reúne cerca de trezentas e cinquenta mil moedas e medalhas, é um ativo de civilização, conhecimento e ciência ao serviço da humanidade. É, por isso, fácil que qualquer cultura ou nação encontre na Biblioteca Apostólica um seu tesouro representado e que esse seja um primeiro motivo para cultivar curiosidade, afeto e colaboração científica com este organismo. Tal acontece também com Portugal e, podemo-lo testemunhar, de uma forma esplêndida, se bem que haja tanto por descobrir e realizar. Um dos documentos portugueses mais icónicos é, sem dúvida, o “Cancioneiro da Vaticana”, que reúne 1205 composições da lírica trovadoresca galaico-portuguesa, tornando-se assim uma das fontes essenciais que documentam a emergência da nossa língua e literatura. Mas há, só para dar outro exemplo entre mil, um requintadíssimo repositório de literatura científica ligada a Portugal que tem passado inobservado. Um dos casos clamorosos que podemos citar é o do “Regimento do astrolábio e do quadrante”, o mais antigo opúsculo conhecido e impresso com regras náuticas, por onde gerações de pilotos se iniciaram nas ciências da cosmografia e navegação, e que teve uma edição portuguesa, na oficina de Herman de Campos, nos inícios de 1500. Há cem anos que a historiografia portuguesa, partindo da descoberta que Joaquim Bensaúde fez na Biblioteca estatal de Munique, fala apenas desse exemplar e de uma outra versão depositada na Biblioteca Municipal de Évora, desconhecendo o exemplar, em excelente estado de conservação, que se encontra na Vaticana. Quem sabe se uma nova geração de historiadores portugueses se interessará, com o afinco e os meios necessários, em trabalhar os fundos da Biblioteca Apostólica e do Arquivo Secreto Vaticano, tão decisivos também para a explicação de Portugal.

 

[SEMANÁRIO#2430 - 24/5/19]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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