Tudo acabará bem

Liturgia 28 março 2020  •  Tempo de Leitura: 5

Cada geração tende a absolutizar a sua experiência como inteiramente inédita. No entanto, quando mergulhamos nas páginas do tempo, redescobrimos versões dos mesmos episódios, como se cada protagonista tivesse de repetir autonomamente, no palco da história, um papel previamente determinado por um antigo guião. O aforisma sapiencial «nada de novo debaixo do sol» serve também para ler este tempo, sobretudo quando evocamos o contexto e a memória de uma das mais prestigiadas vozes da espiritualidade ocidental, Juliana de Norwich.

 

Quando a peste negra alastrava pela Europa, dizimando grande parte da população, a guerra entre os reinos de Inglaterra e França fervilhava há já várias décadas, e a Igreja católica cambaleava com o grande cisma do ocidente, Juliana, a reclusa inglesa, destacou-se com uma inesperada e otimista abordagem sobre o homem e sobre Deus.

 

Sabemos muito pouco da sua história. Não sabemos ao certo qual teria sido o seu nome. Chamam-lhe Juliana porque viveu numa casa ao lado da igreja de St. Julian, na importante cidade portuária de Norwich, Inglaterra. Sabemos pela sua própria descrição que, a partir do dia 13 de maio de 1373, foi atingida por uma doença gravíssima. Depois de contemplar Cristo crucificado, recebe um conjunto de 16 revelações, escritas nesse mesmo ano, mas reescritas, comentadas e condensadas de novo, em 1393, na versão intitulada “O livro das revelações do amor divino”.

 

Como destacou o Papa Bento XVI, em audiência geral (1/12/2010), foi precisamente o Senhor quem lhe revelou o sentido daquelas visões. «Gostarias de saber o que quis dizer o teu Senhor e conhecer o sentido desta revelação? Sabe-o bem: aquilo que Ele quis dizer é o amor. Quem to revela? O amor. Por que to revela? Por amor... Assim aprendi que nosso Senhor significa amor».

 

A «experiência limite» tem o potencial de reconfigurar os nossos esquemas mentais. Compreendemos, por exemplo, que o tempo é precioso. O que desejamos que seja feito, é melhor que o façamos já. Aprendemos a relativizar o secundário e a focarmo-nos no que é realmente importante. No caso de Juliana, o sofrimento associado à experiência de conversão leva-a a fazer uma leitura corretiva da espiritualidade.

 

Nos últimos dias ouvimos repetidas vezes este refrão como se fôssemos os novos protagonistas de mais um capítulo da antiga história. «Tudo acabará bem», sabemos disso. Entretanto, enquanto não acaba, neste tempo de quarentena, vale a pena visitar aquela que foi a conselheira de muitos. Uma verdadeira mãe



Na introdução a um pequeno livro de orações a partir dos textos daquela que é considerada, na história da literatura inglesa, a primeira autora a escrever a sua biografia na língua materna, Richard Chilson refere-se a várias dimensões da sua obra que vale a pena revisitar.  

 

Juliana desafia-nos a reexaminar a imagem de Deus moldada pela mentalidade patriarcal. A autora inglesa apresenta Jesus como uma mãe que cuidadosamente alimenta os filhos. Destaca como o Filho da Virgem se serve de metáforas femininas para falar do Reino que Ele próprio veio instaurar, tais como a da mulher que coze pão, a que procura uma moeda, ou, em contexto diferente, a da viúva que oferece a maior das ofertas no tesouro do templo. E mesmo quando se refere à masculinidade de Deus, associa-a à sua grande ternura. Por tudo isso, Ele é um Deus que exerce sobre nós uma atração irresistível.

 

Outro aspeto marcante do seu pensamento é a noção de pecado. A centralidade do pecado, no cristianismo, não pode ofuscar a força da graça através da qual somos salvos. Motivados por uma visão negativa do homem e do mundo, a obsessão com o pecado relega para um plano secundário a ação de Deus na história do homem. «O pecado é necessário, mas tudo acabará bem, e tudo acabará bem, e qualquer coisa, seja o que for, acabará bem», lembra-nos a venerável Juliana.  

 

Nos últimos dias ouvimos repetidas vezes este refrão como se fôssemos os novos protagonistas de mais um capítulo da antiga história. «Tudo acabará bem», sabemos disso. Entretanto, enquanto não acaba, neste tempo de quarentena, vale a pena visitar aquela que foi a conselheira de muitos. Uma verdadeira mãe. Talvez encontremos nela uma estratégia para reler, com os olhos da fé e da esperança, o tempo presente.

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