Ano novo para a religião?

Crónicas 13 janeiro 2019  •  Tempo de Leitura: 8

1. O ser humano é um animal indeciso. No animal, os instintos e o mundo ao qual estão adaptados, ou são adaptados, formam um todo. Como escreveu Roger Garaudy [1], o animal é um feixe de respostas. O ser humano é um feixe de perguntas. Não se adapta apenas ao meio, transforma-o. Umas vezes para bem, outras para mal.

 

 

Nunca está em equilíbrio perfeito com a natureza. A lógica interna do seu mundo em crescimento, construído e governado pela ciência e pela técnica, leva-nos a pensar e agir como se todos os nossos problemas pudessem ser resolvidos pela ciência e pela técnica. Não é verdade. Mas só a estupidez pode dizer mal da investigação científica e das transformações tecnológicas. A sabedoria mais elementar descobre as suas espantosas vantagens e os seus quotidianos limites. É miopia esquecer que nenhuma actividade clarividente pode dispensar a interrogação filosófica, as linguagens da beleza e as exigências da ética.

 

Não é impossível descobrir, por outro lado, que não estamos apenas em face de problemas e enigmas que mais cedo ou mais tarde poderão encontrar soluções. Em todos os tempos e lugares há testemunhos de pessoas que despertaram para o mistério sem nome que resiste a todas definições e classificações, um não sei quê, uma noite luminosa que tudo envolve e sem a qual tudo se banaliza ou enlouquece. O fundamental na atitude religiosa é o espírito de atenção, de releitura constante do mistério do mundo. Isto nada tem a ver com o irracionalismo, pai da violência, seja em que domínio for. A própria religião, sem a vigilância ética, pode tornar-se uma abominação.

 

Dada a complexidade de tudo o que ficou dito, parece-me que a cooperação entre ciência, ética, religião e estética pode criar um clima espiritual que nos defende de todos os simplismos, irmãos de todos os fundamentalismos. Como diz o físico Antonio Rañada, os fundamentalistas religiosos e os ateus militantes têm algo em comum: acreditam que a geografia do mundo cabe toda num só mapa, seja na interpretação intransigente de um livro sagrado ou nos dados de uma ciência exclusivista e totalizadora.

 

2. Na organização do calendário litúrgico, este Domingo celebra o Baptismo de Jesus banhado num clima de enigmas. Há razões para julgar que lhe assiste alguma base histórica, apresentada numa interpretação de continuidade e ruptura com o profetismo do Antigo Testamento.

 

Não convinha nada que Jesus fosse baptizado por João que tinha discípulos que sobreviveram ao seu assassinato e ao de Jesus. Estes poderiam sempre dizer aos seguidores de Cristo: foi o nosso mestre que baptizou o vosso e não o contrário. De facto, nos diferentes Evangelhos existe uma vontade de mostrar que Jesus exaltou a figura de João Baptista e este a de mostrar que não era ele o messias. Apenas lhe preparava o caminho. A narrativa de S. Lucas é comovente. Por um lado, faz de Jesus um discípulo de João, por outro, mostra a ruptura com o seu antigo mestre [2].

 

O que terá acontecido? João era o símbolo da necessidade de reformar a religião de Israel, mas ainda na linha austera dos profetas. A sua pregação não se afastava de um rigor moralista carregado de ameaças. Jesus teve uma experiência espiritual que o obrigou a romper com esse mundo. Diz o texto que Jesus baptizado entrou em oração. O resultado exprime a própria personalidade do Nazareno: Ele é a terra aberta ao céu e o céu aberto à terra, aberto a todos os mundos. O Espírito de Deus, ao banhar o seu espírito, declara que Ele é um filho muito amado. Jesus sai dessa experiência com uma missão: mostrar que toda a gente, a começar pela mais desclassificada, sob o ponto de vista religioso, moral e material, é amada por Deus e chamada a viver do mesmo Espírito: Espírito de Deus, Espírito de Cristo, Espírito de renovação da Igreja, Espírito de transformação do mundo, numa imensa pluralidade de carismas e de caminhos. É um Espírito que solicita a nossa inteligência e a nossa vontade, mas que nunca se impõe à nossa liberdade.

 

3. Com este novo ano surgiu um novo jornal online. Chama-se 7Margens.Pretende preencher uma lacuna. António Marujo e Jorge Wemans explicam o projecto: a partir de hoje tem à sua disposição informação, notícias, alertas, opinião e comentário sobre as mais diversas buscas espirituais que marcam o nosso tempo, desde as acolhidas e promovidas pelas religiões estabelecidas, até àquelas sem nome protagonizadas por pessoas de todas as formações.

 

Em setemargens.com encontrará tudo isto, editado e orientado por critérios jornalísticos. Independente de qualquer instituição, religiosa ou outra, setemargens.com rege-se por princípios profissionais e tem como objetivo tratar informação relativa ao fenómeno religioso, entendido na maior abrangência possível do conceito. Deste ponto de vista, é um projeto inédito no mundo que fala português.

 

A entrevista a Pedro Abrunhosa a propósito do seu novo disco, Espiritual, foi uma boa escolha. Recorto uma passagem que tem a ver com o Espírito deste Domingo e desta crónica: "Vivem-se momentos de ausência de mistério, momentos de pura fisicalidade, de aparência, muita aparência, de 'eu sou o que tenho', 'eu sou o que mostro que tenho'. Às vezes nem é o que tenho, se eu mostrar as pessoas vão deduzir que tenho. Logo, sou aquilo que mostro. E isso faz com que se viva numa feira de vaidade, que me faz lembrar muito os vendilhões do templo, faz-me lembrar muito este abastardamento dos valores humanos, que é uma das falências da decadência. Os impérios começam a decair exactamente por isso, por uma certa febre da vaidade da aparência."

 

Não posso esconder a alegria que este acontecimento me provocou. Sem pretender constituir uma alternativa ao que existe na Igreja, vai certamente viajar por paisagens que ela ou ignora ou faz que ignora. Serão novos olhos a ver o que a cegueira dos grandes meios de comunicação insiste em ignorar.

 

Outra carência do nosso catolicismo é a falta de espírito de interrogação filosófica, sem a qual a teologia adormece. Em Coimbra, lembrando José Dias da Silva, o Instituto Universitário Justiça e Paz vai revisitar, a várias vozes, a Doutrina Social da Igreja e as suas incidências na intervenção política.

 

Em Lisboa, na Capela do Rato, vários nomes conhecidos da cultura portuguesa vão interrogar a Filosofia, a Literatura, a Espiritualidade.

 

Não sou jornalista, mas desejo que este novo ano nos traga muitas e boas surpresas.

 

[1] Cf Palavra de Homem, D Quixote, Lisboa, 1975
[2] Lc 3, 15-22

Artigos de opinião publicados no Jornal Público

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