O silêncio de Deus

Crónicas 31 março 2018  •  Tempo de Leitura: 8

O silêncio pode assumir muitas e diversificadas fisionomias. Há silêncios constrangedores, quando sentimos que algo devia estar a acontecer ou a ser dito mas o que se ouve é somente uma insuportável carência de palavra. Sentimo-nos verdadeiramente aliviados quando alguém a rompe com uma generalidade superficial. O silêncio pode ser imposto pelas circunstâncias ou por uma autoridade exterior e, aí, pode mostrar-se intimidante. Um silêncio forçado pode provocar uma sensação sufocante de injustiça ou mesmo o desejo de vingança. Pode pesar ou ser negro.

 

Mas alguns silêncios revelam-se profundamente revigorantes. Contemplar uma paisagem que nos arrebata pela beleza: aí qualquer balbuciar seria devastador. Beleza e silêncio reclamam-se mutuamente. Só depois da devida assimilação se pode titubear qualquer som, mesmo que atabalhoado. Há um silêncio que confirma e alimenta relações. Ao contrário do constrangedor, o silêncio entre dois amigos que viajam ou, sentados, olham na mesma direção, ou que simplesmente estão, é nutridor da amizade. O silêncio de um abraço profundo num momento de dor, em que as palavras soçobram, é penetrantemente pacificador. Tantas vezes uma lágrima ou um sorriso silenciosos revelam uma sintonia invejável entre duas pessoas.

 

Ou simplesmente os que, silenciosamente aliados, preparam uma surpresa para tornar a vida de alguém mais alegre.

 

Há ainda o silêncio cúmplice dos criminosos, dos Judas que se vendem em troca de 30 moedas de prata, dos que simplesmente permanecem calados para não se desinstalarem ou por falta de coragem para denunciar a injustiça. Mas também há os que decidem manter o silêncio, tantas vezes entregando a própria vida para salvar a vida de outros, e o daqueles que, na intimidade das suas vidas ou a quem foi roubada a voz, sofrem unidos à cruz de Jesus.

 

Impressiona ver como cada pessoa vive cada vez mais na sua ilha quando andamos na rua, no autocarro ou no metro. Mas são ilhas especiais pois só aparentemente lhes habita o silêncio. O ruído tornou-se a companhia habitual, mesmo essencial, de cada transeunte. Os phones impedem de ouvir quem está ao nosso lado, mas conectam-nos ao outro lado do mundo. Para estes, é preferível o barulho que atravessa os mares ao calar de todos os ruídos para escutar alguém.

 

Tal como a pausa é parte essencial de uma composição musical, assim o silêncio ocupa um espaço básico na comunicação humana. Necessitamos do silêncio para ouvir os outros. Num mundo em que valemos pelo que produzimos, o marketing é rei. Invadem-nos imagens, sons, palavras, muitas palavras. Compra e venda de ideias e opiniões, de ações e atividades. Acabamos por não encontrar o modo ou o espaço para escutar verdadeiramente o interior do outro. E bem sabemos que o interior não se exprime à primeira, como se de uma banalidade se tratasse. Requer tempo e ocasião, chronos e kairos, exige uma atitude de acolhimento e o desejo de sermos escutados. O silêncio é uma ponte para o coração.

 

Mas há silêncios que metem medo. Antes de mais, os silêncios com os quais “possibilitamos ao nosso coração descobrir as mentiras secretas, com que nos enganamos a nós mesmos” (Papa Francisco, Mensagem para a Quaresma de 2018). O medo do que o encontro profundo connosco próprios nos possa revelar arrasta-nos para a superficialidade do ruídos mundanos, dissimulando a realidade e evitando o confronto com a nossa verdade. Mas apavoram-nos aqueles silêncios escuros e vazios, em que a noite não tem estrelas e tudo parece frio. Não há respostas, tudo parece eternamente dúbio. Tateia-se e não se sente nenhuma textura, tudo é oco. As trevas são espessas e é-se esmagado pelo peso do nada. O desconhecido. A incerteza. A solidão.

 

O Sábado Santo é o dia do grande silêncio: “Um grande silêncio reina hoje sobre a terra; um grande silêncio e uma grande solidão. Um grande silêncio porque o Rei dorme; a terra estremeceu e ficou silenciosa, porque Deus adormeceu segundo a carne” (de uma antiga homilia de Sábado Santo: no Oficio de Leitura deste dia). É o silêncio sepulcral. Jesus morreu e foi sepultado. Os seus amigos provam o fel amargo da desilusão. As Escrituras afirmam que todos os discípulos o traíram. Mas não terão sido eles os traídos? Largaram tudo para o seguir, confiaram-lhe as suas vidas e, afinal, o messianismo de Jesus reduz-se a um sepulcro frio, escuro e silencioso como todos os túmulos da terra.

 

As desilusões dos sonhos não realizados, os equívocos da nossa vida. Os silêncios de Deus quando esperávamos a sua presença. Os momentos de perda em que a dúvida e a incerteza nos assaltam. A solidão que bate à porta. A incerteza. A incerteza de não saber do amanhã, de não saber se há futuro.

 

Sim, aquele vazio do primeiro Sábado Santo repete-se nas nossas vidas. Há uma diferença, porém: para os discípulos de Jesus foi mesmo o primeiro Sábado Santo; mas nós gozamos da graça de termos sido precedidos por eles. É verdade que não torna o silêncio menos real. Quando a dor nos visita com uma doença, uma relação que irremediavelmente se quebra, uma desilusão com a pessoa amada, o abandono, a injustiça, uma dúvida de fé que se instala apesar da oração, o pecado, a ausência, a morte… e o silêncio parece ser a única resposta… fazemos uma experiência semelhante à dos discípulos.

 

Mas hoje sabemos que, depois do silêncio, renasce a Palavra. Parecia o fim e no entanto… aquele silêncio era o mesmo que precedeu a Palavra criadora: “Faça-se luz”. O silêncio de Deus é fecundo. É no tempo silencioso que a semente se torna fruto e o ser humano se torna pessoa. O silêncio permite transformar a morte em vida. Aquele túmulo, afinal, era uma fonte pujante de vida e de alegria. Aquele lugar, aparentemente escuro e vazio, veria uma luz que o mundo inteiro não pode conter. Por isso, para nós, as experiências do silêncio de Deus serão sempre um convite à fé e à esperança. Entendendo assim o silêncio, faz sentido citar a frase completa do Papa Francisco mencionada acima: “Dedicando mais tempo à oração, possibilitamos ao nosso coração descobrir as mentiras secretas, com que nos enganamos a nós mesmos, para procurar finalmente a consolação em Deus. Ele é nosso Pai e quer para nós a vida.” Não há razão para o medo, pois o silêncio esconde a vida e a consolação de Deus.

 

Arrancados ao silêncio dos nossos túmulos, também nós podemos gritar como Maria Madalena no primeiro dia de Páscoa: “Vi o Senhor!” Este grito, que nos enche de esperança, rasgará todo o silêncio, e ecoará por toda a eternidade.

 

PontoSJ]

Artigos de opinião publicados no site Observador.

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