PORQUE HÁ TANTOS MIGRANTES E REFUGIADOS?

Crónicas 1 janeiro 2018  •  Tempo de Leitura: 4

A quadra do Natal, em Itália, ficou marcada por uma insólita disputa simbólica a propósito de presépios. De um lado, estavam as paróquias e, do outro, municípios governados pela Liga Norte, um partido nacionalista e xenófobo. Antecipando a mensagem do Papa Francisco para o Dia Mundial da Paz, que se realiza a 1 de janeiro, houve comunidades que construíram os presépios paroquiais dentro de barcas semelhantes às que naufragam ao longo do ano no Mediterrâneo, cheias de refugiados. E colocaram-lhes esta legenda: “Jesus é um refugiado entre os refugiados, último entre os últimos”. As autoridades municipais não gostaram e reclamaram ruidosamente pelo regresso à representação tradicional do presépio como a única legítima, pois só essa encarnaria os valores que nos são próximos. É uma situação curiosa em que o poder civil tenta condicionar a autorrepresentação do espaço religioso. Essas vozes esquecem-se, porém, que, se removermos a patine ornamental que desfigura e domestica a maior parte das representações natalícias, a narrativa subjacente não pode ser mais clara: o evangelho de Mateus representa, de facto, a família de Jesus como uma família refugiada que desce ao Egito para fugir da violência de Herodes, e o de Lucas descreve o nascimento de Jesus num descampado, entre os animais, porque não havia lugar em qualquer estalagem para uma mulher grávida, pobre e doutra região.

 

Não é, por isso, estranho ao núcleo mais vital da fé cristã a mensagem que o Papa Francisco destinou agora à jornada mundial da paz, com o seguinte título: “Migrantes e refugiados, homens e mulheres em busca de paz”. Nem é inesperado que nos mobilize para a reflexão a partir da pergunta: “Porque há tantos refugiados e migrantes?”. É a pergunta que as nossas sociedades não querem ver, mas que nos recentra no horizonte do presente, para lá da retórica protecionista do egoísmo, da indiferença ou do medo. “Porque há tantos refugiados e migrantes?” O Papa elenca um conjunto de razões que não podem ser escamoteadas: a fuga às guerras, conflitos e “limpezas étnicas” que se multiplicam; a vontade de deixar para trás o desespero de um futuro impossível de construir; a busca de oportunidades de trabalho, de instrução ou de reconhecimento dos direitos fundamentais; o desejo de reunir famílias que ficaram dispersas. O Papa repete que ele próprio vê, e convida-nos a ver, os migrantes como uma oportunidade e não como uma ameaça. Se soubermos reparar — como ele insiste —, os migrantes e refugiados chegam até nós de mãos cheias. Trazem uma impressionante bagagem de coragem, espírito de sacrifício, energia e competências múltiplas, além do património que representa as suas culturas de origem.

 

Para 2018, o Papa propõe-nos quatro pedras miliárias para uma ação eticamente comprometida: os verbos acolher, proteger, promover e integrar. Acolher é tomar a efetiva decisão da hospitalidade. Proteger recorda-nos a urgência de garantir a dignidade inviolável daqueles que batem à nossa porta fugindo de um perigo real, e de impedir a sua exploração, sob qualquer forma. Promover implica-nos no apoio ao desenvolvimento humano integral de migrantes e refugiados, nomeadamente através do acesso à educação, ao trabalho e aos cuidados de saúde. Por fim, integrar passa por empenhar-se em que refugiados e migrantes se tornem cidadãos de pleno direito e participem ativamente na vida da sociedade que os acolhe, numa linha de complementaridade e colaboração na promoção do bem comum. É tempo de arregaçar as mangas. 

 

[©Revista Expresso | 2357, 30 de dezembro de 2017]

Artigos de opinião publicados em vários orgãos de comunicação social. 

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